Così Fan Tutte - Teatro Nacional de São Carlos, 5 de Dezembro de 2006
Mais para o menos do que para o mais, o Così de Mozart abre a temporada do Teatro Nacional de São Carlos sob o signo da mediocridade.
Tardias vão as comemorações dos 250 anos do nascimento de Wolfgang Amadeus Mozart. A impressão que fica é que o imenso espólio mozartiano, ao longo deste famigerado ano de comemorações - em que foi sujeito a infindáveis explorações -, já pouco tem para oferecer, em matéria de produções líricas.
É bem verdade que a lírica mozartiana - ou a produção mozartiana, em geral -, pela genialidade que encerra, presta-se a intermináveis leituras. O problema reside, justamente, nas leituras e propostas...
A récita de Cosi Fan Tutte a que assisti, a 5 do corrente mês, traduziu, pois, com propriedade a decadência das citadas comemorações: ficámos com o refugo.
Da produção, destacaria os figurinos (Vera Marzot), pela melhor das razões - trajos à l´époque, requintados, concebidos com aprumo, bem ao jeito mozartiano: com o mesmo recorte, sublinhando o luxo e o recato, a contenção e a graça, o humor e a ternura.
A encenação de Mário Martone, do meu ponto de vista, não vinga. Centrar a lógica representativa na cama, além de demasiado óbvio e vulgar, é absolutamente antagónico ao espírito mozartiano! Mozart não rima com "pornografia" (sublinho as aspas!!!), caro senhor! Mozart é erótico, eloquente, apreciador da evocação, da secundarização! Não há nada de primária - a ler como antagónico à mais refinada simbolização - na trilogia Mozart / Da Ponte!!!
Se a este entendimento cénico se acrescentar uma cenografia rasca e feia, tosca e de mau gosto, temos tudo para que a coisa comece trôpega! Nem as luzes de Pasquale Mari - particularmente felizes no sublinhar do recato e do intimismo - salvam a coisa!
No capítulo da execução, a coisa não foi muito diferente...
Donato Renzetti dirigiu uma orquestra com óbvios laivos de amadorismo, onde as fífias nos brindaram com uma cadência lamentável - os sopros, sobretudo! Quanto à falta de sincronia entre intérpretes e orquestra, o melhor é nem falar: cada um por si, parecia o lema da coisa.
Vamos a intérpretes solistas: dois contra um, a favor dos homens.
Desde início, optei pelo primeiro elenco, nomeadamente pela presença de Laura Polverelli (Dorabella), cuja carreira internacional é digna de menção. Lixei-me, penso eu...
Infelizmente, no que à prestação vocal concerne, as três solistas femininas fizeram jus ao título da ópera: todas (quase) iguais, pela mediania.
O mor das vezes, a Prima Donna de Così Fan Tutte é Fiordiligi, a (mais) séria e recatada. Pois bem... Irina Lungu foi fantasmagórica na interpretação - ausente, quase diáfana... -, apesar de digna no canto, sem mais. A voz é adequada - solidamente lírica, evidentemente não muito grande (como se quer, aliás!) -, já a técnica, assim-assim - vocalizações inseguras, agudos gritados, sem grande segurança, legatto precário...
Polverelli (Dorabella) mais parecia um mezzo-verdiano do que uma intérprete mozartiana! De voz ampla e consideravelmente grande, revelou-se ineficaz na delicadeza e harmonia. Salvou-se pelo piquante da representação - adequado e convincente -, aqui e ali graciosa.
A Despina de Silvia Colombini teria sido fantástica, não fora a circunstância de se tratar de um papel lírico... De voz feia e técnica fraca, a intérprete - evidentemente inteligente e boa actriz - salvou-se pela graça: sabe o que é uma interpretação buffa (apesar de alguns exageros histriónicos - sobretudo na voz, que apenas serviram para disfarçar a sua fragilidade vocal, creio eu).
Quanto aos homens, à excepção de Bruno Pratico (Don Alfonso), outro galo cantou (e muito bem!!!).
Em minha opinião, a coroa de glória desta récita foi o admirável e elegante Ferrando, interpretado pelo tenor Salmir Pirgu. Um verdadeiro tenor mozartiano: disciplinadíssimo (as vocalizações foram de um rigor à la Kraus, à la Simoneau!), de agudos luminosos, voz bem aberta e clara, dicção graciosa, legatto admirável... Um verdadeiro regalo! Quando a estas qualidades vocais se junta um notável talento cénico - apaixonado, arrebatado e colérico qb - , temos homem!
Apesar das admiráveis qualidades vocais de Simone Alberghini - timbre viril, técnica sólida - creio que compôs um Guglielmo algo circense...
O pior para o fim... Bruno Praticò, entre outras lamentáveis façanhas, conseguiu conspurcar um dos mais belos tercetos líricos que conheço - Soave sia il vento - tais não eram as fífias e entradas fora de tempo. De voz cansada e insegura, sem folgo, refugiou-se atrás de um recitativo admirável e gracioso (há que reconhecê-lo). Faltou-lhe a ironia... A figura, essa não ajudava em nada: apesar dos modos, o estilo era mais de taberneiro do que de aristocrata perverso.
Triste e desiludido, regressei ao meu canto, acompanhado dos Così de Karajan, de Solti (o último!!), de Busch (1936), de Gardiner...