
(Roberto Alagna, como Carlo)
Há uns bons quinze anos, no Châtelet, Luc Bondy assinou uma encenação exemplar e brilhante de Don Carlos, a versão (original) francesa de Don Carlo, ora em cena no Met. O protagonista de então era o jovem e talentoso Roberto Alagna, grande estrela em ascensão, tida como a mais promissora figura da lírica verdiana. Na dita produção, o tenor franco – italiano compunha um Carlos heróico e pueril, de sangue fervilhante e audaz. Conquistou-me, desde a primeira nota.
Década e meia volvida, desta feita interpretando Carlo – o protagonista da versão italiana, em cinco actos -, Alagna reincarna esta mítica figura. Para que dúvidas não pairem no ar, o desempenho deste tenor constituiu a suma glória da récita de 11 de Dezembro.
A encenação de Nicholas Hytner pareceu-me um parente pobre da mencionada proposta de Bondy. A comparação impõe-se, dadas as semelhanças entre os dois trabalhos, nomeadamente no tocante ao peso das tonalidades – cinza, negro e escarlate. No caso de Bondy, o escarlate era sinónimo de libido, sendo – salvo erro – exclusivo dos amantes, Carlos e Isabelle de Valois. A opção foi, além de eficaz, de uma originalidade genial.
Hytner foi particularmente feliz na concepção sombria e lúgubre, que inundo de degradés cinza e preto. Fiel ao trabalho de Verdi – e Schiller, não esqueçamos -, o encenador destacou o essencial: toda a trama gira em torno da tragédia, do inconciliável, do incompatível. Em Don Carlo(s), não há compromisso possível, sendo o conflito resolvido no termo da existência.
Embora a encenação tivesse servido com eficácia a progressão da trama, contámos com um trabalho plástico que se situa, algures, entre o pindérico - Auto-da-fé, com um Cristo horrendo – e o convencional, pró-minimalista (floresta de Fontainebleau).
Alagna, como referi, foi a grande estrela da tarde. O seu Carlo, embora amadurecido e abeirando-se dos cinquenta anos de existência, mantém-se absolutamente estrelar. Há jovialidade a rodos, uma paixão incontida e nobreza na sua interpretação. A voz guarda a luminosidade (quase) original, grande e cheia, perfeitamente lírica e com uma limpidez notável. No seu elemento natural, ajudado pela esbelta figura, declamou com inegável poesia.
Keenlyside revelou um Rodrigo teatralmente deslumbrante – nobre e grandioso, triunfando na cena da morte -, embora curto em volume e algo estranho ao estilo verdiano. Faltou-lhe robustez… Quem brilha em Mozart, raramente impressiona em Verdi!
Furlanetto terá sido a segunda grande figura da récita, em matéria de solistas. Apesar das hesitações, abrilhantou o momento de glória de Filipe, Ella giammai m’amo. Também o Grande Inquisidor, de Halfvarson, impressionou, mais pela aterradora recriação – impregnada de malignidade -, do que pela nobreza dos graves, aqui e ali, bastante aquém do ideal…
No capítulo feminino, deparámos com um nível menos sólido. Anna Smirnova esteve nos antípodas do espírito de Eboli. Apesar de correcta no O Don Fatale, a mezzo revelou-se cavernosa e matrona, no porte e gestos, além de deter uma voz excessivamente cheia e pesada. Eboli é uma princesa, não uma bruxa! Será pérfida, mas não abusemos!!! Sugiro que a senhora se dedique ao estudo do mezzo verdiano, detendo-se particularmente nas expressões de Cossotto.
Marina Poplavskaya, a Senhora Met do momento, compôs uma Elisabeth vocalmente muito interessante. Seguríssima, tecnicamente, inundou a sua personagem de lirismo. Porém, apesar do brilho e limpidez da voz, esta enferma de certa magreza. Elisabeth demanda um soprano fluente em spinto e envergadura, à la Mattila, por exemplo. Poplavskaya detém o spinto, sendo parca no segundo quesito. É pena! Ser uma Desdemona ideal não é sinónimo de impressionar em Elisabeth…
Termino com a segunda grande glória da récita, a exemplar direcção de Nézet-Séguin, que dirigiu a melhor orquestra lírica do mundo, com um brilho e craveira absolutamente impressionantes. Visivelmente, há vida para além das estrelas venezuelanas – e não me refiro ao miserável Chávez…
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(4/5)