Travei conhecimento com a inigualável obra de Bergman tardiamente, via Face a Face. Anos depois, regressei ao mestre através de Saraband. Maravilhei-me com Morangos Silvestres e perturbei-me com A Máscara.

(Cartaz publicitário de Sonata de Outono)
Hoje à tarde, em minha casa, fez-se história. Assisti a Sonata de Outono, seguramente uma das mais fabulosas criações cinematográficas de sempre.
Bergman é único no tratamento das relações intersubjectivas, sobretudo pela ousadia: sem pudor nem clemência, Ingmar Bergman dá primazia ao ódio, à conflitualidade e crueza, sempre na linha da brutalidade humana.
Antes de mais, Sonata de Outono é um eloquente tratado de psicopatologia. Artisticamente, Bergman fala-nos da falha narcísica, abandonismo, ódio e inveja, no âmbito das relações filiais / parentais.
Charlotte (Ingrid Bergman) é uma destacada pianista, profundamente self-centered, cujos investimentos libidinais se apoiam, quase em exclusivo, nas suas performances e interpretações musicais. Criança mal amada, cedo carregou o fardo da ferida do desamor, compensando-a por via de uma dedicação invulgar a uma arte. O seu narcisismo doente, profundamente carecido, foi-se nutrindo dos aplausos e admiração dos espectadores, que foram tomando o lugar em falta: o do amor (materno) primário.
A dada altura da vida, Charlotte vê-se impedida de uma dedicação absoluta à música, em virtude de persistentes lombalgias, cuja intensidade a priva dos indispensáveis ensaios. Charlotte claudica, a crítica hostiliza-a e a pianista, humilhada, abandona temporariamente a carreira, dedicando-se à família, obviamente contrafeita.
Até então, as relações mantidas com as filhas – Eva (Liv Ullmann) e Helena (Lena Nyman) – haviam-se pautado pela inconsistência e superficialidade. Sem modelos parentais de qualidade, Charlotte tornou-se numa mãe abandónica, quase sempre ausente. Quando inicia a sua entrega à família, o abandonismo cede em favor da instalação da destrutividade.
Eva, a filha mais velha, então adolescente, torna-se na principal vítima do narcisismo destrutivo materno. Por via da identificação projectiva, a mãe deposita maciçamente em Eva as suas partes defeituosas, que não tolera em si própria: a filha é, aos olhos da mãe, um patinho-feio, de pés desmesurados, dentes tortos e encavalitados, lábios mal desenhados, sem sobrancelhas, etc.

(A jovem Charlotte com a filha Eva, a seus pés)
Cedo Eva aceita esta identidade defeituosa, tornando-se numa mulher triste, profundamente infeliz e desinvestida, incapaz de amar genitalmente.
Quanto à outra filha, precocemente vitimada por uma doença degenerativa, que a incapacita e deforma, Charlotte opta por uma via mais radical e perturbada: a da forclusão. Helena, uma vez mais, em razão da horrenda doença de que padece, reabre a ferida narcísica da mãe que, em resposta à insuportabilidade do sofrimento – o decorrente de ter gerado uma criatura defeituosa -, a exclui da consciência.
O filme começa com um reencontro das três mulheres, antevendo-se um ajuste de contas.
Eva é em tudo antagónica à mãe. Opaca, desinvestida, sem brilho nem graça. Na magnífica cena do piano, Bergman mostra-nos o abismo que se criou entre ambas. A mãe brilha, ao piano. A filha, nem tanto. Na impossibilidade de se identificar à mãe, Eva inveja-a, quando aquela executa com graciosidade a peça de Chopin. O ódio e a inveja são o que de mais vivo existe entre as duas mulheres.

(Charlotte - Ingrid Bergman -, à esquerda, e Eva - Liv Ullmann, à direita)
Eva expõe, então, o ódio reprimido, dirigindo-o contra o objecto desamante, num movimento de luta desesperada pela saúde. Pouco tem a perder, Eva. A mãe privara-a do amor primária e da possibilidade de gerar e amar um filho – incitara-a a interromper uma gravidez adolescente. Ironicamente, a mãe natureza roubou-lhe o único filho que conseguiu gerar e amar. Se existe horror na terra, o horror sem nome, é esse mesmo, o da perda de quem gerámos e amamos sem limites.

(Liv Ulman, na pele e Eva)
O materno odioso e destrutivo constitui o eixo central da problemática de Eva.
Quanto a Helena, restaram-lhe os cuidados maternos possíveis, que a irmã lhe dedicou, após a perda do filho. A própria mãe, quando a reencontra na casa de Eva, é incapaz de a compreender. É Eva que interpreta os estranhos sons de Helena. A mãe sempre fora surda à sua dor, quanto mais agora...
Perto do epílogo, quando a mais absoluta brutalidade reina, Helena, desesperada, procura reunir-se à irmã e mãe. Arrasta-se e grita de dor. Evidentemente, a mãe não a escuta.
Eva, num movimento saudavelmente reparador, nos minutos finais da película, redige uma missiva à mãe, procurando mostrar-lhe que o ódio camufla amor.

(Cartaz publicitário de Sonata de Outono)
Hoje à tarde, em minha casa, fez-se história. Assisti a Sonata de Outono, seguramente uma das mais fabulosas criações cinematográficas de sempre.
Bergman é único no tratamento das relações intersubjectivas, sobretudo pela ousadia: sem pudor nem clemência, Ingmar Bergman dá primazia ao ódio, à conflitualidade e crueza, sempre na linha da brutalidade humana.
Antes de mais, Sonata de Outono é um eloquente tratado de psicopatologia. Artisticamente, Bergman fala-nos da falha narcísica, abandonismo, ódio e inveja, no âmbito das relações filiais / parentais.
Charlotte (Ingrid Bergman) é uma destacada pianista, profundamente self-centered, cujos investimentos libidinais se apoiam, quase em exclusivo, nas suas performances e interpretações musicais. Criança mal amada, cedo carregou o fardo da ferida do desamor, compensando-a por via de uma dedicação invulgar a uma arte. O seu narcisismo doente, profundamente carecido, foi-se nutrindo dos aplausos e admiração dos espectadores, que foram tomando o lugar em falta: o do amor (materno) primário.
A dada altura da vida, Charlotte vê-se impedida de uma dedicação absoluta à música, em virtude de persistentes lombalgias, cuja intensidade a priva dos indispensáveis ensaios. Charlotte claudica, a crítica hostiliza-a e a pianista, humilhada, abandona temporariamente a carreira, dedicando-se à família, obviamente contrafeita.
Até então, as relações mantidas com as filhas – Eva (Liv Ullmann) e Helena (Lena Nyman) – haviam-se pautado pela inconsistência e superficialidade. Sem modelos parentais de qualidade, Charlotte tornou-se numa mãe abandónica, quase sempre ausente. Quando inicia a sua entrega à família, o abandonismo cede em favor da instalação da destrutividade.
Eva, a filha mais velha, então adolescente, torna-se na principal vítima do narcisismo destrutivo materno. Por via da identificação projectiva, a mãe deposita maciçamente em Eva as suas partes defeituosas, que não tolera em si própria: a filha é, aos olhos da mãe, um patinho-feio, de pés desmesurados, dentes tortos e encavalitados, lábios mal desenhados, sem sobrancelhas, etc.

(A jovem Charlotte com a filha Eva, a seus pés)
Cedo Eva aceita esta identidade defeituosa, tornando-se numa mulher triste, profundamente infeliz e desinvestida, incapaz de amar genitalmente.
Quanto à outra filha, precocemente vitimada por uma doença degenerativa, que a incapacita e deforma, Charlotte opta por uma via mais radical e perturbada: a da forclusão. Helena, uma vez mais, em razão da horrenda doença de que padece, reabre a ferida narcísica da mãe que, em resposta à insuportabilidade do sofrimento – o decorrente de ter gerado uma criatura defeituosa -, a exclui da consciência.
O filme começa com um reencontro das três mulheres, antevendo-se um ajuste de contas.
Eva é em tudo antagónica à mãe. Opaca, desinvestida, sem brilho nem graça. Na magnífica cena do piano, Bergman mostra-nos o abismo que se criou entre ambas. A mãe brilha, ao piano. A filha, nem tanto. Na impossibilidade de se identificar à mãe, Eva inveja-a, quando aquela executa com graciosidade a peça de Chopin. O ódio e a inveja são o que de mais vivo existe entre as duas mulheres.

(Charlotte - Ingrid Bergman -, à esquerda, e Eva - Liv Ullmann, à direita)
Eva expõe, então, o ódio reprimido, dirigindo-o contra o objecto desamante, num movimento de luta desesperada pela saúde. Pouco tem a perder, Eva. A mãe privara-a do amor primária e da possibilidade de gerar e amar um filho – incitara-a a interromper uma gravidez adolescente. Ironicamente, a mãe natureza roubou-lhe o único filho que conseguiu gerar e amar. Se existe horror na terra, o horror sem nome, é esse mesmo, o da perda de quem gerámos e amamos sem limites.

(Liv Ulman, na pele e Eva)
O materno odioso e destrutivo constitui o eixo central da problemática de Eva.
Quanto a Helena, restaram-lhe os cuidados maternos possíveis, que a irmã lhe dedicou, após a perda do filho. A própria mãe, quando a reencontra na casa de Eva, é incapaz de a compreender. É Eva que interpreta os estranhos sons de Helena. A mãe sempre fora surda à sua dor, quanto mais agora...
Perto do epílogo, quando a mais absoluta brutalidade reina, Helena, desesperada, procura reunir-se à irmã e mãe. Arrasta-se e grita de dor. Evidentemente, a mãe não a escuta.
Eva, num movimento saudavelmente reparador, nos minutos finais da película, redige uma missiva à mãe, procurando mostrar-lhe que o ódio camufla amor.