Eis a razão de ser deste post:
Em matéria de ópera wagneriana, raras são as produções disponíveis em vídeo de Tristan und Isolde.
Recordo a incontornável récita de Orange, dirigida por Bohm, em 1973, com Nilsson e Vickers nos papeis titulares. Com tudo o que comporta de grandioso - a dramatização dos intérpretes, a direcção metafísica de Bohm - este registo padece de uma vergonhosa realização, capaz de enjoar o pobre espectador.
Recentemente, o Met divulgou um Tristan alternativo, ousado na estética - apesar de insonso -, embora medíocre nas interpretações, apesar de Heppner, apesar de Pape, apesar de Levine...
O Tristan und Isolde que aqui me traz merece uma imensa referência, sobretudo pela surpresa e perplexidade que em mim desencadeou.
Trata-se de um registo proveniente de um teatro respeitável - Grand Théâtre de Genève -, ainda que muito distante das habituais grandes cenas lírica mundiais. Acresce a isto a juventude do encenador - Olivier Py -, que não creio possuir um curriculum particularmente extenso, bem como a qualidade do elenco, que apenas conta com uma habituée dos grandes palcos - Fujimura -, por sinal assaz pouco interessante...
Começaria por destacar o labor de Olivier PY, porventura a maior glória deste artigo!
A encenação de PY investe na exploração dos antagonismos wagnerianos, que nesta ópera mais não são do que desdobramentos da ansiedade depressiva - como já aqui tive ocasião de explicitar.
Refiro-me às habituais incompatibilidades da wagneriana: amor e vida, felicidade e existência.
De facto, em Wagner impera a clivagem, não havendo espaço para a matização. É como se o universo fosse bicolor, a preto e branco. Na wagneriana, o compromisso não existe.
Isolda, vítima de um luto sem elaboração possível, no acto I, num ápice, torna-se escrava absoluta do volúpia, do amor carnal, desejando Tristão com um ardor animalesco. Prosaicamente, diria que se passa de 8 a 80!
Pois bem, a genial encenação de PY, do meu ponto de vista, assenta na expressão desta realidade clivada, envolta em antagonismos e incompatibilidades, onde o espaço para o esbatimento, a estompagem ou a matização é, em rigor, nulo.
Assim, Olivier PY constrói uma lógica cénica decalcada da wagneriana: os décors, as estruturas, os cenários, o guarda-roupa são, ou a negro, ou a branco, sem concessão de espécie alguma, o mesmo é dizer sem cinza!
É impressionante a abrupta mudança de cores! Por vezes, atinge-se a ruptura: sem transições, sem cambiantes - Isolda-em-luto-negro vs Isolda-amante-branca.
O ovo-de-colombo da encenação: simbólica rica, prolixa, eficácia teatral inquestionável, envolvendo recursos simples. Extraordinário!
Mas, caro leitor, este registo oferece outras surpresas!
Para além da genial encenação, deparamos com uma orquestra absolutamente surpreendente, dirigida por uma batuta tão discreta como soberana.
Armin Jordan, a meses de entregar a alma ao criador, propõe uma leitura maravilhosa da partitura. A orquestra, certeira, sólida e rigorosíssima, balanceia entre o lirismo mais profundo e a poesia absoluta. Pura e efervescente recriação, em permanência...
No capítulo do elenco, a surpresa manteve-se inabalável.
Comecemos por Isolda, ladys first.
Na história da lírica wagneriana do pós-guerra, creio que se impuseram dois paradigmas na interpretação desta ultra-complexa personagem: Flagstad representa a aristocracia vocal, predominantemente lírica, enquanto Nilsson materializa a pathos; a primeira cantava com a razão e pregaminhos, ao passo que a segunda interpretava com as vísceras.
Ambas fizeram escola: Flagstad perpetuou-se em M. Price, por exemplo. Já Nilsson eternizou-se em Ligendza e Meier.
Na actualidade, duas intérpretes soberanas impõe-se no contexto destas escolas: Stemme, cerebral e nobre, segue o trilho de Kirsten Flagstad e Jeanne-Michèle Charbonnet - a Isolda do presente registo - representa a interpretação visceral e ultra-dramática de La Nilsson.
Pois bem, Charbonnet - intérprete americana que eu desconhecia em absoluto, confesso! - propõe-nos uma magistral Isolda, que brilha pela espessura dramática.
Soprano dramático de meios imponentes - apesar do timbre comum... -, Jeanne-Michèlle delineia uma protagonista tremendamente convicta e multifacetada. Maugrado a fragilidade dos agudos - que se vão tornando progressivamente mais comprometidos e feios à medida que a récita cresce... -, a sua convicção teatral e interpretativa arrebata!
Desde a Narrativa de Isolda - início do acto I - Charbonnet revela-se: altaneira e arrogante no porte, corroída pela dor do luto, exibe a sua ferocidade. Com a progressão da trama, a fêmea revela-se e a insanidade triunfa! Dilacerante, pela complexidade.
Clifton Forbis - tenor ou barítono, afinal??? - propõe-nos um estupendo Tristão.
Baritonal à la Vinay e Domingo, opta pela poesia, em detrimento do drama: o timbre é belo e nobre, apesar da falta de coloração teatral.
Falta-lhe a animalidade... parece-me demasiado contido, no acto III, onde é suposto dilacerar-se...
A Brangane de Fujimura - alguém me explica a razão do seu grande sucesso?! -, correcta na voz, revela-se demasiado servil; criada em excesso, diria eu!
Ludwig - nos idos anos 1960 e 1970 -, A Brangane absoluta, mostrou-nos que a sua personagem pode ser grandiosa e respeitável, pese embora a sua condição servil. Fassbaender, ao seu jeito, sublinhou a nobreza da serva de Isolda.
Do elenco, destacaria ainda o convincente Alfred Reiter - Rei Marke -, algo convencional na melancolia, ainda assim. Sugeria um retoque na sua imagem, um pouco caricatural, mais porteiro de discoteca gay do que soberano...
Uma palavra final para a surpreendente realização de Andy Sommer, que rompe com o ortodoxo e convencional estilo Brian Large (que parece ter um monopólio no sector da ópera filmada!).
No caso deste registo, a câmara palpita, num movimento solto e intencionalmente descontrolado, quase anárquico, avesso a regras. Selvática, a câmara segue a libido...
Posto isto, paciente leitor, a meu ver, se pretende um Tristan und Isolda em dvd, coerente, inteligente e - acima de tudo - surpreendente, ei-lo!
A prova da infinitude da wagneriana - e são tantos e tontos os que vaticinam o seu fim...
ps adquiri este registo em Paris, em final de Setembro, por 30 euros. Para minha grande surpresa, encontrei-o à venda, ontem, no El Corte Ingles, a 50 euros!!! Nem mais, nem menos! Quem é que se anda a encher no meio disto???
Em matéria de ópera wagneriana, raras são as produções disponíveis em vídeo de Tristan und Isolde.
Recordo a incontornável récita de Orange, dirigida por Bohm, em 1973, com Nilsson e Vickers nos papeis titulares. Com tudo o que comporta de grandioso - a dramatização dos intérpretes, a direcção metafísica de Bohm - este registo padece de uma vergonhosa realização, capaz de enjoar o pobre espectador.
Recentemente, o Met divulgou um Tristan alternativo, ousado na estética - apesar de insonso -, embora medíocre nas interpretações, apesar de Heppner, apesar de Pape, apesar de Levine...
O Tristan und Isolde que aqui me traz merece uma imensa referência, sobretudo pela surpresa e perplexidade que em mim desencadeou.
Trata-se de um registo proveniente de um teatro respeitável - Grand Théâtre de Genève -, ainda que muito distante das habituais grandes cenas lírica mundiais. Acresce a isto a juventude do encenador - Olivier Py -, que não creio possuir um curriculum particularmente extenso, bem como a qualidade do elenco, que apenas conta com uma habituée dos grandes palcos - Fujimura -, por sinal assaz pouco interessante...
Começaria por destacar o labor de Olivier PY, porventura a maior glória deste artigo!
A encenação de PY investe na exploração dos antagonismos wagnerianos, que nesta ópera mais não são do que desdobramentos da ansiedade depressiva - como já aqui tive ocasião de explicitar.
Refiro-me às habituais incompatibilidades da wagneriana: amor e vida, felicidade e existência.
De facto, em Wagner impera a clivagem, não havendo espaço para a matização. É como se o universo fosse bicolor, a preto e branco. Na wagneriana, o compromisso não existe.
Isolda, vítima de um luto sem elaboração possível, no acto I, num ápice, torna-se escrava absoluta do volúpia, do amor carnal, desejando Tristão com um ardor animalesco. Prosaicamente, diria que se passa de 8 a 80!
Pois bem, a genial encenação de PY, do meu ponto de vista, assenta na expressão desta realidade clivada, envolta em antagonismos e incompatibilidades, onde o espaço para o esbatimento, a estompagem ou a matização é, em rigor, nulo.
Assim, Olivier PY constrói uma lógica cénica decalcada da wagneriana: os décors, as estruturas, os cenários, o guarda-roupa são, ou a negro, ou a branco, sem concessão de espécie alguma, o mesmo é dizer sem cinza!
É impressionante a abrupta mudança de cores! Por vezes, atinge-se a ruptura: sem transições, sem cambiantes - Isolda-em-luto-negro vs Isolda-amante-branca.
O ovo-de-colombo da encenação: simbólica rica, prolixa, eficácia teatral inquestionável, envolvendo recursos simples. Extraordinário!
Mas, caro leitor, este registo oferece outras surpresas!
Para além da genial encenação, deparamos com uma orquestra absolutamente surpreendente, dirigida por uma batuta tão discreta como soberana.
Armin Jordan, a meses de entregar a alma ao criador, propõe uma leitura maravilhosa da partitura. A orquestra, certeira, sólida e rigorosíssima, balanceia entre o lirismo mais profundo e a poesia absoluta. Pura e efervescente recriação, em permanência...
No capítulo do elenco, a surpresa manteve-se inabalável.
Comecemos por Isolda, ladys first.
Na história da lírica wagneriana do pós-guerra, creio que se impuseram dois paradigmas na interpretação desta ultra-complexa personagem: Flagstad representa a aristocracia vocal, predominantemente lírica, enquanto Nilsson materializa a pathos; a primeira cantava com a razão e pregaminhos, ao passo que a segunda interpretava com as vísceras.
Ambas fizeram escola: Flagstad perpetuou-se em M. Price, por exemplo. Já Nilsson eternizou-se em Ligendza e Meier.
Na actualidade, duas intérpretes soberanas impõe-se no contexto destas escolas: Stemme, cerebral e nobre, segue o trilho de Kirsten Flagstad e Jeanne-Michèle Charbonnet - a Isolda do presente registo - representa a interpretação visceral e ultra-dramática de La Nilsson.
Pois bem, Charbonnet - intérprete americana que eu desconhecia em absoluto, confesso! - propõe-nos uma magistral Isolda, que brilha pela espessura dramática.
Soprano dramático de meios imponentes - apesar do timbre comum... -, Jeanne-Michèlle delineia uma protagonista tremendamente convicta e multifacetada. Maugrado a fragilidade dos agudos - que se vão tornando progressivamente mais comprometidos e feios à medida que a récita cresce... -, a sua convicção teatral e interpretativa arrebata!
Desde a Narrativa de Isolda - início do acto I - Charbonnet revela-se: altaneira e arrogante no porte, corroída pela dor do luto, exibe a sua ferocidade. Com a progressão da trama, a fêmea revela-se e a insanidade triunfa! Dilacerante, pela complexidade.
Clifton Forbis - tenor ou barítono, afinal??? - propõe-nos um estupendo Tristão.
Baritonal à la Vinay e Domingo, opta pela poesia, em detrimento do drama: o timbre é belo e nobre, apesar da falta de coloração teatral.
Falta-lhe a animalidade... parece-me demasiado contido, no acto III, onde é suposto dilacerar-se...
A Brangane de Fujimura - alguém me explica a razão do seu grande sucesso?! -, correcta na voz, revela-se demasiado servil; criada em excesso, diria eu!
Ludwig - nos idos anos 1960 e 1970 -, A Brangane absoluta, mostrou-nos que a sua personagem pode ser grandiosa e respeitável, pese embora a sua condição servil. Fassbaender, ao seu jeito, sublinhou a nobreza da serva de Isolda.
Do elenco, destacaria ainda o convincente Alfred Reiter - Rei Marke -, algo convencional na melancolia, ainda assim. Sugeria um retoque na sua imagem, um pouco caricatural, mais porteiro de discoteca gay do que soberano...
Uma palavra final para a surpreendente realização de Andy Sommer, que rompe com o ortodoxo e convencional estilo Brian Large (que parece ter um monopólio no sector da ópera filmada!).
No caso deste registo, a câmara palpita, num movimento solto e intencionalmente descontrolado, quase anárquico, avesso a regras. Selvática, a câmara segue a libido...
Posto isto, paciente leitor, a meu ver, se pretende um Tristan und Isolda em dvd, coerente, inteligente e - acima de tudo - surpreendente, ei-lo!
A prova da infinitude da wagneriana - e são tantos e tontos os que vaticinam o seu fim...
ps adquiri este registo em Paris, em final de Setembro, por 30 euros. Para minha grande surpresa, encontrei-o à venda, ontem, no El Corte Ingles, a 50 euros!!! Nem mais, nem menos! Quem é que se anda a encher no meio disto???
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