
(Carlos Castro e Renato Seabra)
Esta é uma reflexão psicanalítica - quiçá delirante - de um caso cujos contornos factuais plenos desconheço. Move-me a compreensão subjectiva das realidades psíquicas envolvidas e das dinâmicas estabelecidas – a minha dama profissional.
Longe dos olhares maniqueístas – patológicos, por assentarem na clivagem (ferozes e incondicionais apoiantes de um das personagens – que beatificam -, em desfavor da outra – qual Satã) –, o olhar psicanalítico procura seguir uma visão compreensiva e explicativa, tanto quanto possível, dos fenómenos.
No caso Castro vs Seabra, creio haver, objectivamente, uma vítima: o primeiro, cuja vida lhe foi roubada. Porém, no plano da subjectividade, a questão ganha outros contrnos, por força da elevada complexidade que encerra.
Não obstante, a relação de ambos - parece-me - contém a marca da perversão. Não por se tratar de uma relação homossexual, mas pelo desvio que comporta. Na relação, não há vítimas: Renato, sequioso de glória – movido por uma aspiração narcísica desmesurado – seduz (seja por que via for) o sexagenário. Castro, homem maduro e vivido, criatura bem relacionada nos meios da moda e quejandos, abre as portas ao jovem adulto. A troco de amor – cuja expressão pode assumir formas várias, como bem sabemos. A idade ensina-nos que ninguém dá nada a ninguém…
Entendamo-nos: a relação homossexual, entre indivíduos adultos e maduros, não é uma relação perversa Sê-lo-á quando, na sua génese, se encontram ocultos interesses contrários aos dos envolvidos. Há relações homo e hétero movidas por interesses que respeitam o outro, concebido como um fim em si mesmo. A relação dos dois homens em questão, ao que tudo indica, parece ter sido movida pelo interesse, surgindo o outro como um veículo de acesso a algo.
Na relação amorosa, o outro constitui uma totalidade, um fim, alvo privilegiado dos investimentos libidinais. Na relação perversa, arcaica e primitiva, no lugar do outro total, deparamos com uma parte do outro. É esta dimensão instrumental que marca o desvio, característico da perversão. O fetichista – perverso por excelência – não ama outro sujeito, mas apenas uma parte muito específica deste: os pés / sapatos, no caso.
Evidentemente, a homossexualidade egodistónica – a única considerada patológica, dado que comporta sofrimento psíquico (“Sou gay e não me sinto bem na minha pele”) – perece, de igual modo, estar presente neste sórdido caso.
O gesto insano de Renato, que mais não é do que um agir patológico de fantasmas sado-masoquistas que animam a mente humana, contém uma explicação: de forma reiterada, aniquila sadicamente Castro, como se o desaparecimento deste fosse equacionado simbolicamente a um esvaziamento da sua homossexualidade.
Por identificação projectiva, Renato deposita em Carlos Castro a sua insuportável homossexualidade. Aniquilando-o, em jeito omnipotente, Renato imagina deter um controlo mágico sobre uma identidade inaceitável: a sua identidade (também) homossexual.
Renato Seabra enferma, muito provavelmente, de uma perturbação da personalidade de tipo borderline. Nele coexiste a busca doentia, no exterior, da glória narcísica. O investimento no corpo / imagem, a procura de um reconhecimento e valorização junto dos demais (via brilho mediático, da moda, por exemplo) constituem a prova de um narcisismo carente e frágil. O sujeito, incessantemente, almeja um reconhecimento jamais experimentado.
A outro nível, no mesmo Renato, deparamos com a radical perturbação da identidade, essencial nesta patologia: ora uma coisa, ora o seu contrário, o sujeito, em sofrimento, procura instalar-se num território, onde se reconheça e reveja. De manhã homo, à tarde hétero, porventura bi, ao início da noite… Embora as questões da identidade sexual – nomeadamente a sua instabilidade – não sejam características da patologia borderline, creio que, no caso de Renato Seabra, as eventuais oscilações – que quase todos intuímos! – deverão ser compreendidas dentro desta lógica de instabilidade identificatória.
Ao que tudo indica, no contexto de um surto psicótico – em corte com a realidade -, o jovem adulto, incapaz de suportar o conflito identificatório – “Serei homo… hetero?” - agiu o seu ódio, dirigindo-o contra Castro, doravante representante sumo da intolerável homossexualidade. Em pleno registo psicótico, dominado pela equação simbólica (nos antípodas da representação), Seabra mata Castro, triunfando sobre a sua homossexualidade: é como se a morte do representante simbolizasse o termo da sua condição homo.
A morte de Carlos Castro terá sido vivida como o termo de uma angústia insuportável. Desaparecendo a criatura onde depositamos o que em nós não toleramos, erradica-se o mal! Eis como, radicalmente, a identificação projectiva patológica encerra um conflito impossível de ser vivido psiquicamente.
Em jeito de síntese, diria que a homofobia segue a lógica da identificação projectiva, que esteve na base deste homicídio, ao que tudo indica. O homofóbico, incapaz de tolerar as suas dúvidas relativas à sua identidade sexual, projecta-as no universo gay, que a todo o custo evita e procura erradicar: “Afastando-os, magicamente, apago uma parte da minha identidade, que não tolero”.