segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Anna di Lammermoor


(Anna Netrbko como Lucia - Lucia di Lammermoor, Met 2009)

Sugiro que o fiel leitor avalie a prestação de Anna Netrebko, como protagonista de Lucia di Lammermoor, na récita a que aqui aludi (e aqui) - Met, 2009. Mais: sugiro que substitua o preconceito (para não falar de narcisismo destrutivo) por uma atenta avaliação ;-)


Pessoalmente, creio haver espaço para muitas Lucia's: Callas (a dramática), Sutherland (a pirotécnica), Gruberova (a mais-que-pirotécnica), Dessay (a belcantista) e Netrebko (a fémea, actriz, intérprete, cantora and so on). À côté, há ainda Scotto e Anderson (a excelsa).

Termino com uma sugestão: que se desidealizem as pretéritas! Respeite-mo-las e aprecie-mo-las, sem esquecer que existem outras, actuais, diferentes, mas igualmente magnéticas e brilhantes! Se assim não for, tornar-nos-emos escravos do mundo "pretérito, perfeito e idílico", que apenas existe nas depressivas mentes (doentes).

Agora, é tempo de degustar a cena da Loucura e o seu final (Spargi d'amore pianto).
Bom proveito!

9 comentários:

Ricardo disse...

Concordo com o João quando diz que há lugar para muitas Lucias.

Já vi esta versão e ouvi a transmissão em directo do Met. Apesar de não achar que a Netrebko esteja superlativa aqui (creio que o Puritani de 2 anos antes foi muitíssimo mais bem conseguido, no que diz respeito a belcanto), é um bom contributo para o papel.
Não me vou pronunciar quanto às prestações de Sutherland ou Gruberova, pois é sabido que não gosto muito de nenhuma delas embora lhes reconheça os (grandes) méritos pirotécnicos.
Quanto a este DVD, acho que vale a pena ver, pois além de ser uma produção bonita, há bom canto durante 2h e pouco. A protagonista entrega-se completamente à personagem e consegue convencer sempre em termos de carácter. Vocalmente, acho que não há motivos para a crucificação de que foi alvo quando cantou este papel no Met: a voz soa bonita, ampla e embora não seja dotada da maior das agilidades, a verdade é que nunca se embaraça e, na pior das hipóteses, cumpre sem grande distinção (Quando rapita in estasi). Nas restantes, Netrebko oferece-nos uma Lucia perfeitamente credível e vocalmente sumptuosa: dueto do primeiro acto e todo o segundo acto.
No final, e na sempre esperada cena da Loucura, Netrebko não desilude: o fraseado das secções Il dolce suono...Ardon gli incensi é absolutamente irreprensível roçando nalguns momentos o genial. A coloração vocal das palavras está extremamente bem conseguida e conjugada com as suas capacidades como actriz faz com que a cena da loucura mostre realmente uma mulher destroçada pela perfídia do irmão e não apenas uma cantora vestida com rendas ensanguentadas a executar vocalizo atrás de vocalizo.
Quanto à cabaletta final (Spargi d'amaro pianto), tirando algum cansaço evidente na repetição, a coloratura é muito funcional sem ser brilhante mas não sendo de maneira nenhuma embaraçosa. Netrebko resolve bem a questão de "o que fazer em cena na repetição?" e a ornamentação que utiliza para a linha vocal original é de bom gosto sem cair em pirotecnia excessiva e desnecessária. O infame Mi bemol que não está escrito mas que como toda a gente sabe é a "money note" do papel é cantado embora não seja um Mi b da Mariella Devia. No entanto, é funcional e cumpre.

Marius Kwicien oferece um Enrico muito muito bom e Beczala canta maravilhosamente e também representa muito bem na quinteto do casamento.

A produção de Mary Zimmerman é bonita, acho muito boa a ideia de introduzir o fotógrafo no Sexteto. Muita gente tem crucificado esta opção mas na minha opinião resulta mesmo muito bem pois a acção pára para que cada uma das personagens exprima o que lhe vai na aula perante tal situação e, nesse sentido, introduzir o elemento do fotógrafo não é nada de escandaloso, servindo apenas como reforço à ideia de congelar algo no tempo e, afinal de contas, tirar uma fotografia é isso mesmo e numa festa de casamento, todos sabemos que isso é feito (até à exaustão e para nosso desespero... ;) ).

Acho sinceramente que esta Lucia pode figurar sem vergonha juntamente com os outros registos vídeo desta ópera de que dispomos. Certamente não será a melhor, mas também não será a pior nem será de forma alguma má: acho que no geral é bastante boa, com alguns momento menos bons e outros extraordinários.

Il Dissoluto Punito disse...

Ricardo,

Faço minhas as tuas palavras! * * * * em * * * * *, não?

Ricardo disse...

Acho que sim. Flawed, but exciting!

portasabertascadeirasaosoco disse...

ouvir isto ás 7h da manhã é um prenuncio de dia em cheio,vou mais feliz para o trabalho :)
obrigado pelo video Dissoluto,gostaria de não morrer sem ouvir isto com os olhos.

demoura disse...

Concordo inteiramente com o Ricardo na sua apreciação da versão da Lucia do MET com Anna Netrebko.
"Flawed but exciting" !

J. ildefonso. disse...

Bom comentário Ricardo.

Há lugar para muitas Lucias diferentes. Não me parece que a Netrebko cante com particular brilho os papeis de coloratura a que se tem dedicado ultimamente, talvez com a excepção da Giulietta, mas por outro lado estas mesmas escolhas demonstram argucia na gestão da carreira. Acredito que a voz da Netrebko é basicamente a dum lirico com um timbre bonito e técnica é solida o que permite alguma versatilidade. A gravação dos Puritanos lembrou-me a abordagem que a Freni fez do papel também no inicio de carreira em que a coloratura é competente sem ser transcendental como quando executada por outras cantoras mais dotadas a nivel de agilidade mas em que as longas frases dos andantes beneficiam dum timbre mais cheio e escuro. A Callas consegiu reunir as duas qualidades mas existe sempre espaço para outros artistas desde que sejam validos.
Ficamos à espera que venha a cantar a Iolanta, Rusalvka, Liu, Amelia Boccanegra, Desdemona, talvez até a Elisabetta, etc. Acho que esse é que vai ser o momento de glória da Netrebko.

Dalva M. Ferreira disse...

Eu concordo tanto com você! Pois que vi uma Lucia aqui em São Paulo, no Theatro São Pedro, que é um teatro pequenino porém honesto, que simplesmente me comoveu. A soprano, a argentina Laura Rizzo, esteve divina. Toda a nossa reverência às divas do passado, mas devemos abrir a mente.

Hugo Santos disse...

Eu também concordo com a visão do Ricardo sobre a Lucia da Netrebko. Alguma coloratura poderá ser aproximada, contudo, nas passagens mais líricas, a cantora beneficia de uma voz mais encorpada e um timbre mais escuro que lhe propicia nuances dramáticas, à partida, não tão ao alcance de intérpretes mais pirotécnicas. Temos ainda que a Netrebko é um óptima actriz. Em suma, não sendo a melhor Lucia (quem será?) está muito longe de ser desprezível.

Alberto Velez Grilo disse...

João

Já tinha visto o vídeo com a cena da loucura da Netrebko no met, aliás sou um seguidor fugaz dos vídeos do coloraturafan no youtube.

Gosto da abordagem que a Netrebko faz à cena da loucura. A encenação (5*) conta muito nos dias que correm, a representação também (5*). Vocalmente a senhora tem um timbre agradável, um legatto correcto (4*), um coloratura menos boa (3*).

Resumindo, emociona-me cenicamente mas não vocalmente. E, mais uma vez não nos esqueçamos que uma das características do belcanto é precisamente a transmissão de sentimentos através da voz.

Resumindo: Netrebko é, para mim uma Lucia muito aceitável, mas não superlativa.


Só uma nota final: considerar a Sutherland e a Gruberova como pirotécnicas é, no mínimo, um exagero.

E para o João e o Ricardo: que tal uma ida a Ancona em Fevereiro para assistir à Lucrezia da Devia? Eu já tenho o bilhete :)