quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Castro vs Seabra: um olhar psicanalítico


(Carlos Castro e Renato Seabra)

Esta é uma reflexão psicanalítica - quiçá delirante - de um caso cujos contornos factuais plenos desconheço. Move-me a compreensão subjectiva das realidades psíquicas envolvidas e das dinâmicas estabelecidas – a minha dama profissional.


Longe dos olhares maniqueístas – patológicos, por assentarem na clivagem (ferozes e incondicionais apoiantes de um das personagens – que beatificam -, em desfavor da outra – qual Satã) –, o olhar psicanalítico procura seguir uma visão compreensiva e explicativa, tanto quanto possível, dos fenómenos.

No caso Castro vs Seabra, creio haver, objectivamente, uma vítima: o primeiro, cuja vida lhe foi roubada. Porém, no plano da subjectividade, a questão ganha outros contrnos, por força da elevada complexidade que encerra.


Não obstante, a relação de ambos - parece-me - contém a marca da perversão. Não por se tratar de uma relação homossexual, mas pelo desvio que comporta. Na relação, não há vítimas: Renato, sequioso de glória – movido por uma aspiração narcísica desmesurado – seduz (seja por que via for) o sexagenário. Castro, homem maduro e vivido, criatura bem relacionada nos meios da moda e quejandos, abre as portas ao jovem adulto. A troco de amor – cuja expressão pode assumir formas várias, como bem sabemos. A idade ensina-nos que ninguém dá nada a ninguém…


Entendamo-nos: a relação homossexual, entre indivíduos adultos e maduros, não é uma relação perversa Sê-lo-á quando, na sua génese, se encontram ocultos interesses contrários aos dos envolvidos. Há relações homo e hétero movidas por interesses que respeitam o outro, concebido como um fim em si mesmo. A relação dos dois homens em questão, ao que tudo indica, parece ter sido movida pelo interesse, surgindo o outro como um veículo de acesso a algo.


Na relação amorosa, o outro constitui uma totalidade, um fim, alvo privilegiado dos investimentos libidinais. Na relação perversa, arcaica e primitiva, no lugar do outro total, deparamos com uma parte do outro. É esta dimensão instrumental que marca o desvio, característico da perversão. O fetichista – perverso por excelência – não ama outro sujeito, mas apenas uma parte muito específica deste: os pés / sapatos, no caso.


Evidentemente, a homossexualidade egodistónica – a única considerada patológica, dado que comporta sofrimento psíquico (“Sou gay e não me sinto bem na minha pele”) – perece, de igual modo, estar presente neste sórdido caso.


O gesto insano de Renato, que mais não é do que um agir patológico de fantasmas sado-masoquistas que animam a mente humana, contém uma explicação: de forma reiterada, aniquila sadicamente Castro, como se o desaparecimento deste fosse equacionado simbolicamente a um esvaziamento da sua homossexualidade.


Por identificação projectiva, Renato deposita em Carlos Castro a sua insuportável homossexualidade. Aniquilando-o, em jeito omnipotente, Renato imagina deter um controlo mágico sobre uma identidade inaceitável: a sua identidade (também) homossexual.



Renato Seabra enferma, muito provavelmente, de uma perturbação da personalidade de tipo borderline. Nele coexiste a busca doentia, no exterior, da glória narcísica. O investimento no corpo / imagem, a procura de um reconhecimento e valorização junto dos demais (via brilho mediático, da moda, por exemplo) constituem a prova de um narcisismo carente e frágil. O sujeito, incessantemente, almeja um reconhecimento jamais experimentado.


A outro nível, no mesmo Renato, deparamos com a radical perturbação da identidade, essencial nesta patologia: ora uma coisa, ora o seu contrário, o sujeito, em sofrimento, procura instalar-se num território, onde se reconheça e reveja. De manhã homo, à tarde hétero, porventura bi, ao início da noite… Embora as questões da identidade sexual – nomeadamente a sua instabilidade – não sejam características da patologia borderline, creio que, no caso de Renato Seabra, as eventuais oscilações – que quase todos intuímos! – deverão ser compreendidas dentro desta lógica de instabilidade identificatória.


Ao que tudo indica, no contexto de um surto psicótico – em corte com a realidade -, o jovem adulto, incapaz de suportar o conflito identificatório – “Serei homo… hetero?” - agiu o seu ódio, dirigindo-o contra Castro, doravante representante sumo da intolerável homossexualidade. Em pleno registo psicótico, dominado pela equação simbólica (nos antípodas da representação), Seabra mata Castro, triunfando sobre a sua homossexualidade: é como se a morte do representante simbolizasse o termo da sua condição homo.


A morte de Carlos Castro terá sido vivida como o termo de uma angústia insuportável. Desaparecendo a criatura onde depositamos o que em nós não toleramos, erradica-se o mal! Eis como, radicalmente, a identificação projectiva patológica encerra um conflito impossível de ser vivido psiquicamente.

Em jeito de síntese, diria que a homofobia segue a lógica da identificação projectiva, que esteve na base deste homicídio, ao que tudo indica. O homofóbico, incapaz de tolerar as suas dúvidas relativas à sua identidade sexual, projecta-as no universo gay, que a todo o custo evita e procura erradicar: “Afastando-os, magicamente, apago uma parte da minha identidade, que não tolero”.

15 comentários:

Hugo Santos disse...

Os meus parabéns, caro João. Uma análise extremamente lúcida e reveladora.

J. Ildefonso. disse...

Parabéns João.

Concordo integralmente com a tua leitura que me parece muito oportuna e esclarecedora.

Catarina Matos disse...

Caro Il Dissoluto:
É com um enorme prazer e curiosidade de quem faz parte de um meio que vê frequentemente os desejos de fama e glória camuflarem-se de "formas de Amor" que leio esta sua análise.
Permitam-me, no entanto, não discordar (que, vá lá "a gente" saber) mas apresentar uma outra prespectiva contestando alguns pontos da sua análise.
- Não posso concordar quando diz que o jovem "seduz o sexagenário. É que, por experiência, são os sexagenários, sós e inconformados com a sua decadência física e sexual, que seduzem os jovens aspirantes com promessas (confessadas ou idealizadas)de realização de sonhos. Oferecem-lhes jantares, convites para festas, viagens... O jovem, vendo-se "apetecido", resolve então abdicar de princípios, opções sexuais, e vende a alma para saciar o apetite do idoso, acreditando que a "coisa" é temporária... só até que o idoso lhe sacie também os seus desejos de estrelato.
O tempo passa, e o jovem não vê o seu "sacrifício" recompensado, até que, enojado com o idoso e com a sua própria atitude, despoletado por um qualquer acontecimento específico, perde a cabeça e...
- Não me parece que o jovem tenha uma "homossexualidade egodistónica" (termo que nunca tinha ouvido e que fico muito feliz por aprender!). Parece-me sim, que se trata de um heterossexual assumido que vendeu "o cu" (forma de dizer, porque nem creio que ele fosse o passivo!)para alcançar a fama. Matando o idoso, mata assim o que de mais horrível há nele: a falta de carácter, a cedência da alma e do corpo, castrando no Castro o "objecto" que representa violação que auto-infligiu à sua própria sexualidade.
Mas eu não sou Psicóloga...

Mr. Lg, el Mister disse...

Para já, afirmo desde logo que sou leigo nos meandros de uma ciência denominada de Psicologia. :-)
Mas…
Parabéns pela sua excelente demonstração de análise a estes factos que têm arrasado ultimamente e tragicamente a sociedade portuguesa, Dissoluto.
Brava, bravíssima (e muito próxima da verdade, na minha modesta opinião) Catarina Matos.
LG

Anónimo disse...

E a mãe, João, que, durante a estadia de ambos em NYC falou todos os dias, várias vezes, ao telemóvel com o filho? O meu menino de ouro, chora ela... Não há olhar para ela? Mães portuguesas, matriz católico-rural num contexto de abundância material recente... Quem pode aprender a independência nesse entorno? E não estou a ser frívola, é que essa parte, a da intervenção da família e dos amigos do presumível autor do crime, me impressionou bastante. Abraço, Teresa.

J. Ildefonso. disse...

Relativamente ao perspicaz comentário da Catarina Matos

Encaro a sedução mais como um processo bilateral. Mesmo que da parte do sexagenario tenha tido uma dimensão mais activa encontrou terreno fertil no seu objecto de desejo ou pelo menos uma certa complacência que aparentemente não recusou as investidas eróticas. Aliás parece que o primeiro passo de aproximação foi do jovem o que só por si não justifica obviamente a sedução.
Não sei se o jovem é homosexual, heterosexual ou bisexual o que não é especialmente inportante no caso em questão. O que é notório é a sua dificuldade em lidar com as suas pulsões homosexuais, que estão presentes em qualquer forma de sexualidade, e o conflito ao qual não sabe dar resposta.
Aliás as alegadas declarações do jovem parecem confirmar a leitura do amigo Galamba "Já não sou homosexual", o que implica que até certo ponto se considerou homosexual ou praticou actos homosexuais e a justificação da castração como sendo "para expulsar o vírus da homosexualidade" em si próprio presume-se.

Em todo o caso a homosexualidade é um acessório que em si que não altera os processos de motivação ou funcionamente mental dos individuos. Neste caso são impulsos homosexuais poderiam ser o ciúmes heterosexuais a criar este cenário.

Raul disse...

Quaisquer que sejam as motivações nada perdoa um crime tão brutal. Um pode ser jovem, imaturíssimo, bonito e estúpido e o outro velho, prevertido, sabidão e muito feio, mas perante a brutalidade (cortar os genitais e furar olhos com saca-rolhas)do assassínio não há branqueamento possível do foro psiquiátrico e psicológica. Espero que a justiça americana faça a justiça que falta à justiça portuguesa. Falo como cidadão de uma sociedade civilizada.

J. ildefonso. disse...

Raul

Não é "branqueamento" é tentar perceber o funcionamento mental do individuo. É claro que é um crime brutal e que deve ser feita justiça.

catarinamato@gmail.com disse...

@ J. Ildefonso,
concordo inteiramente consigo,bem como todos os comentários apresentados e artigo que lhe deu origem, do qual só tentei apresentar uma outra prespectiva(excepto um comentário de Anónino que parece esquecer que o Amor dos pais é incondicional, que a consciência do "bem e do mal" e do que possa magoar ou chocar "os seus" leva os jovens adultos à mentira - Ah (e tal...), vou dormir a casa de uma amiga!! - Vai, querida vai, mas não se deitem tarde... não te esqueças de lavar os dentes!!! -, e que esses mesmos pais ludibriados, embora desconfiando ou tendo a certeza do que se passa "tapam o sol com a peneira" para a sua própria defesa emocional e/ou por incapacidade de lidar com a situação. Mas o Amor... é incondicional, bem como a defesa dos seus... até à morte!)

Gostaria só de reforçar a sua ideia do que "a homosexualidade é um acessório", acrescentando que, em minha opinião, grande parte destes "pequenos pormenores" (ser homo ou hetero, seduzir ou ser seduzido, enganar ou não enganar toda a gente, trair ou ser traído...)me parecem acessórios. Ach sim que este é um caso paradigmático de algo mais grave e bem mais enraizado na sociedade actual do que nos queremos dar conta. Parece-me que se trata de um problema gravíssimo de mentalidades:
Por um lado temos um homem com 60 e tal anos (homossexual, o que, no caso é um pormenor que reforça esta minha ideia), que cresceu e viveu até aos seus 30 anos num sistema altamente repressivo e fechado, que se afirma nos loucos anos 80 (para quem se lembra deles, particularmente em Lisboa, sabe bem a que me refiro!) e que vive, até à data da sua morte, no universo da "Beleza", regeitando, creio eu, a bonita ideia de "velhice", e procurando a eterna juventude em relações como a que manteve com o seu assassino, usando e abusando do poder que não teve até aos seus 30 para determinar a evolução profissional de inúmeras pessoas (inúmeras!!!!);
Por outro lado, temos um jovem que desde se conhece (e refiro-me a todos os órgãos de comunicação e conversas de café...)nunca ouviu falar de outra realidade que não fosse a crescente falta de oportunidades laborais para os jovens, em "cunhas", "Tachos", "lobbies" e "conhecimentos". Digo-lhe, com conhecimento de causa,que grande parte da geração que tem agora entra 16 e 25 anos, não tem qualquer fé ou esperança no seu futuro... Infelizmente, fomos nós, enquanto sociedade, que criámos estas "novas mentalidades".
Temo muito que em pouco tempo esta caso deixe de ser paradigmático e exemplar, para passar a ser banal!

J. Ildefonso. disse...

Catarina

Acho que tem toda a razão no que diz.

Mr. LG, el Mister disse...

Cara Catarina Matos,
Parabéns, mais uma vez deu-nos um excelente Post de análise deste caso que nos faz mais do que pensar.
Mas…
Com conhecimento de causa, se os jovens entre os 16 e 25 já perderam toda a fé no futuro,
já o terão empenhado à corrupção , ao lobbie, ao tacho, ao conhecimento…
SERÁ MESMO ASSIM TOTALMENTE E ABSOLUTAMENTE?
Já tenho uma certa idade e, qualquer dia, tenho que tomar a sério que a minha cova aproxima-se. Penso sempre que o Homem progride, não regride. Sou filho ainda da mentalidade Iluminista, crente na razão e no progresso infindável do Homem. Se o aventar da sua hipótese para o futuro estiver certo, então…
corremos o risco de permanência infinda num estado de crise (mental e não só) e de perda irreversível da nossa Civilização Europa-Ocidente, que nos fará mergulhar, de novo, numa outra Idade das Trevas… e se quer que lhe diga, sinais visíveis não nos faltam. :-(
Esta podridão permanecerá after I´m gone?
Não gostaria… não gosto!!... de viver e de deixar o mundo assim neste mísero estado.
Dir-me-á a seguir que não faz futurologia…
E com toda a razão!... :-)
Permita-me esta minha breve reflexão, após aquilo que escreveu.
Cumprimentos.
LG

Raquel V. disse...

Tenho que vir aqui com calma. É a primeira vez que vejo pessoas debaterem este assunto com pés e muita cabeça.

Il Dissoluto Punito disse...

Raquel,

Adoro receber pessoas novas neste espaço :)
Volte e volte e volte! Já agora, comente sem limites!

Raquel V. disse...

Confesso que o que me trouxe ao blogue foi exactamente a sua "psicológica" mais que a ópera. E gostei da forma como os posts que comportam o assunto estão escritos.

Sobre este caso já li muita coisa porque é impossível não nos depararmos com tal. Embora quando tenha tido conhecimento do assunto quase me tenham perguntado se tinha estado enfiada nalgum avião numa viagem de um fim de semana inteiro.

A primeira reacção foi... isto vai ser um prato para os homofóbicos. (E digo-o depois de me ter deparado nos últimos tempos com um tipo de homofóbico, a meu ver, perigoso. O que sendo de um nível cultural supostamente elevado mas com uma inteligência emocional de bradar aos céus, usa desde o facebook aos blogues para mostrar e demonstrar com um discurso aparentemente bem informado porque é um dever social sermos da sua opinião.)

Depois fui lendo comentários em jornais on-line e acho que ainda fiquei mais preocupada com a sociedade. Digamos que nos primeiros tempos tive mesmo que contar várias vezes até cem para conter a revolta.

Ouvi o termo egodistónico pela primeira vez por causa deste caso. E não me pareceu algo destituído de uma certa lógica uma vez que o crime tem contornos que nitidamente ultrapassam o crime convencional.
O tipo de mutilação envolvida não é assim tão comum. Ou ele andava a ler muitos livros de criminologia, e um perfil de psicopata que lhe permitiu premeditar os passos a dar a seguir ao facto consumado, a morte do "outro"... (ironia).

Por outro lado vejo grupos no Facebook, maioritariamente constituídos por jovens, que estão completamente equivocados sobre o porquê de uma família poder defender um dos seus. Grupos esses que mereciam uma espreitadela de psicólogos.

E reparei aqui num comentário interessante. É que existe sem dúvida um poder de gestão de emoções sobre terceiros em pessoas de idade mais adiantada. Seja a pessoa dez ou trinta anos mais velha.

O restante está no post e em alguns comentários.

Raquel V. disse...

Errata:

(..) blogue foi exactamente a sua faceta "psicológica" (...)

(...) e tem um perfil (...)