Para alguns revivalistas mais ortodoxos, os maiores intérpretes do papel titular da ópera Don Giovanni, de Mozart, provêm de Itália. De facto, Pinza, Siepi, Gobbi, Raimondi e Furlanetto figuram entre os mais destacados cantores líricos italianos que deram corpo e voz ao Dissoluto Punito.
Não obstante, pela parte que me toca, considero que a lírica anglo-americana tem dado cartas, no tocante a protagonistas de Don Giovanni.
Senão, vejamos: desde os anos 1980, quantos intérpretes de relevo desta ópera provêm da Grã-bretanha e / ou do Novo continente?
De cor, cito Thomas Allen, Samuel Ramey, Thomas Hampson, William Shimmel, Rodney Gilfry, Simon Keenlyside e Bryn Terfel. Nem mais, nem menos!
(TELDEC 2292 - 44184 - 2 )
A raison d´être desta constatação prende-se com o Don Giovanni da ópera homónima de Mozart, d´après Harnoncourt, Thomas Hampson, de sua graça.
Parti para a audição desta interpretação com reservas.
No computo geral, apesar de algumas agradáveis surpresas - Hampson e Scharinger -, as reservas mantiveram-se - Harnoncourt, Gruberová, Blochwitz, Bonney, e Polgár, para não mencionar Alexander.
Comecemos pela glória desta proposta.
Lírico e teatral qb, nesta interpretação, Hampson compõe um Don Giovanni esplêndido, circunstância que, do meu ponto de vista, constitui o maior argumento - quiçá o único verdadeiro - em favor da aquisição desta mesma interpretação.
Hampson impressiona, desde logo, pela clareza e elegância da dicção, plena de estilo. O italiano é primoroso: melódico, seguro e fluente. A qualidade e nobreza dos recitativos, nos últimos anos, apenas tem como rival Thomas Allen (PHILIPS, Marriner).
Thomas Hampson é um barítono lírico, formado na escola do lied. Foi educado no respeito pela palavra, ensinado a senti-la, antes de a emitir Trata-a com invulgar delicadeza e apreço. O resultado não podia ser outro: um dos mais extraordinários Don Giovanni - diseur que conheço!
No tocante à caracterização, o cantor explora com eficácia a dimensão vil da figura, sempre na linha da elegância - Terfel, nos antípodas desta caracterização, opta pelo rasca, com notável eficácia.
Indubitavelmente, o Don de Hampson tem linhagem, educação a rodos, tanto quanto canalhice e sedução.
Enfim, um verdadeiro protagonista, em torno de quem toda a trama gira, coisa algo rara, desde Siepi e Allen!
Outro dos pesos-pesados deste Don Giovanni é Anton Scharinger, cujo Masetto transcende a habitual modéstia da personagem! Canta um Ho Capito de sonho, como jamais escutei! Não admira que, anos depois, Harnoncourt o tenha convidado para Fígaro (TELEC).
Quanto ao resto do elenco, poucos são os pontos de interesse.
Gruberová, apesar da convicção do Crudele - Ah No, mantém a sua obsessão perfeccionista pela coloratura - que é exímia nunca é demais sublinhar -, negligenciando outros aspectos estruturais da figura de Donna Anna.
Qual Sutherland, compõe uma personagem luminosa na voz, mas algo neutra na leitura dramática. Ambas abordaram Mozart pela via errada, viciadas e presas que se encontravam aos quesitos belcantistas. Que pena!
Alexander canta uma Elvira convencional, na interpretação, com evidentes limitações vocais - estridência, falta de extensão e flexibilidade, timbre grosseiro e vulgar.
É sabido que Barbara Bonney veio a ser uma das mais carismáticas intérpretes mozartianas da década de 1990 - Susanna, Pamina, Zerlina, todas elas gravadas sob a direcção de Harnoncourt (TELDEC).
Apesar da indiscutível beleza da voz - cristalina e ágil -, Bonney desenha uma Zerlina demasiadamente pura, dócil e apagada. Diria que lhe falta endurance mozartiana, que veio a adquirir perto dos quarenta anos.
O Leporello de Polgár seria magnífico, não fora a excessiva seriedade! Falta-lhe ironia, malícia e cinismo.
Blochwitz - outro dilecto do maestro holandês - compõe um Otávio hesitante e inseguro, muito aflito com as vocalizações.
Quanto a Harnoncourt, dirige com convencionalismo.
Diria que a sua proposta não vinga, deixando a desejar.
É certo que, à semelhança de Gardiner, este maestro criou um núcleo duro de cantores que, sob a sua direcção, interpretou parte da mais célebre lírica mozartiana - As Bodas de Fígaro e A Flauta Mágica, além de Don Giovanni; falo de Gruberová, Blochwitz, Bonney, Hampson, Polgár e Scharinger, todos eles integrando o elenco da presente interpretação. Ainda assim, falta harmonia, coesão, sentido dramático e identidade a este conjunto de artistas, sendo esta falha, em grande medida, imputável a Harnoncourt.
Pessoalmente, não hesito em manifestar as minhas reservas diante das propostas líricas de Nikolaus Harnoncort, quando de Mozart se trata.
A presente gravação vem corroborar esta minha impressão, pese embora a exímia prestação de Thomas Hampson - vocal e artística - para além de um ou outro mérito.
Dito isto, fiel e paciente leitor, se busca um protagonista paradigmático, não hesite: Hampson é "do melhorio"! Quanto ao resto, o risco é seu!