segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Os (maiores) Belcantistas


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Desde o ocaso de Scotto – uma das derradeiras Amina da história da lírica – que as récitas de La Sonnambula rareiam crescentemente. À excepção de Swenson (e Anderson, eventualmente), a mais distinta protagonista da ópera dos idos anos 1990, nenhuma outra intérprete marcou este impressionante papel, doravante.


Tive a felicidade de assistir à fabulosa interpretação de Ruth Ann Swenson, no nosso São Carlos – volta Ferreira de Castro, que estás perdoado! -, antes deste teatro nacional se ter metamorfoseado em palco onde a mais execrável escória berra, gesticula e – pasme-se! – administra!


A década de 1990 correspondeu à afirmação de Natalie Dessay como a mais extraordinária representante da agilità. Iniciou-se no domínio ligeiro, progressivamente tendo avançado para o lirico-spinto. A voz tornou-se mais volumosa, entretanto. À data desta La Sonnambula, Nat Dessay poucas rivais tinha neste território: uma Lucia exímia (já para não mencionar a sua excelsa Lucie), uma Manon de suprema elegância, uma Ofélia magnânime... A prova derradeira da supremacia incontestada de Dessay é a sua Amina, inicialmente perpetuada em áudio – cuja disciplina, pureza da ornamentação certeira e estilo não têm paralelo -, agora disponibilizada em vídeo.


A interpretação de La Dessay, neste registo, é absolutamente assombrosa. A voz aquece com alguma lentidão, mas, por ocasião do acto II, a criatura transcende-se: pianissimi cristalinos, cadenze de sonho, repletas de harmonia, segurança e brilho, e – sublinhe-se – um jogo interpretativo magistral: saltita da dilaceração dramática, por ocasião do desenlace, para o mais fino lirismo, na cena de sonambulismo, terminando, em apoteose absoluta, invadindo-nos com uma joie irresistível, onde mescla o humor com o kitsch e patético.


A Callas pretendia converter-se ao teatro, após o prematuro ocaso vocal, Pela mão de Pasolini, mostrou-nos os seus dotes puramente teatrais. Natalie Dessay será, um dia, uma comédienne hors pair! A avaliar pela sua veia humorística e infindáveis dotes histriónicos (e lábeis)... Quem resiste à magistral lição de teatro vocal com que encerra a récita???


Flórez, à semelhança da partenaire, revela prudência inicial, triunfando em Ah perché non posso odiarti, onde se dissipam todas as dúvidas relativamente à supremacia da sua veia belcantista – esta, sem um concorrente que seja!


Teatralmente menos eficaz que Dessay – sacrifica a interpretação em favor do canto, permanecendo escravo dos tiques habituais (braços sempre cruzados, diante do peito) -, Juan Diego revela, ainda assim, um estilo e linhagem assombrosos. Há vida para além de Tónio, Duque de Mântua, Nemorino, Corradino (Matilde di Shabran), Fenton, Don Ramiro, Conde d’Almaviva (O Barbeiro de Sevilha)...


Como terceira glória, surge-nos o extraordinário Petrussi, baixo buffo, ora convertido ao registo mais lírico, cuja elegância e fraseado nos conquistam, sem reservas. A idade – e consequente perda de vigor físico – constituirão o calcanhar-de-aquiles da sua prestação. Exteriormente, em nada poderia rivalizar com o Elvino fresco, esbelto e juvenil de Flórez... Mas, caro e estimado leitor, atente-se na grandiosidade da prestação do seu Rodolfo em Oh ciel! Che tento...


Evelino Pidò, um profundo conhecedor desta partitura, dirige uma orquestra sumptuosa, fina e rica nas subtilezas, com madeiras e cordas de sonho. O coro é um portento, em afinação e desempenho cénico, contando com inúmeros membros que rondam as seis décadas de vida...


Encerro com a parte menos conseguida desta La Sonnambula, a encenação.


Mary Zimmerman é uma habituée da encenação, tendo recentemente enveredado pela lírica. O seu curriculum conta com algumas pérolas – as derradeiras Lucia e Armida do Met (esta última, que presenciei, de uma beleza pueril infindável, com um jogo de cores e luzes magnífico, porventura uma das glórias maiores da produção).


Para esta produção, Zimmerman opta por subverter o mote que orienta a maioria das encenações, que se confinam à ilustração da aldeola suíça, que o libreto tão bem descreve. Nem Visconti escapou a este ditame, nos idos anos 1950!


A acção tem lugar numa sala de ensaios, onde a troupe prepara uma apresentação de, justamente, La Sonnambula. Os intérpretes encontram-se informalmente trajados, conferindo esta opção consistência à lógica do trabalho da encenadora. Há pontos muito interessantes, nomeadamente no que se refere à dinâmica da protagonista, por duas vezes colocada no exterior do palco - a última das quais, particularmente feliz: na cena de sonambulismo, uma secção do palco, por onde caminha Amina, avança por cima da orquestra, abeirando-se do público.


Contudo, há pontos mal conseguidos. Nem sempre é claro que Lisa acumula a sua prestação com a figura de encenadora... O cenário onde a trama tem lugar conta com pequenas variações, o que torna o enquadramento demasiado permanente e, por essa via, fastidioso... A custo se percebem as transformações do cenário, por ocasião da derradeira cena...


Se o leitor procura a maior parelha belcantista actual do planeta (refiro-me aos três solistas), que ombreia com as da segunda metade do século XX – Callas/Valletti/Modesti e Sutherland/Pavarotti/Ghiaurov -, THIS IS YOUR CHOICE!


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(4/5)

4 comentários:

Raul disse...

O "Ah, non credea mirarti" é uma das mais belas árias que existem e é o paradigma da ária belcantista. Pessoalmente não encontro adjectivos para sublimar o prazer que experimento quando a ouço. O recitativo,recheado de murmúreos e silêncios, é uma perfeita "lamentazione", para mim sem rival no bel canto italiano. Esse mesmo recitativo encontra na Callas o melhor exemplo da sua divina arte. Isto tudo para dizer que a Sonâmbula da Callas não tem rival, nem a aproximação. Gosto muito de Natalie Dessay, mas não sou um incondicional da sua versão, que possuo em cd.

J. Ildefonso. disse...

Ao contrario dos Puritanos também acho que a Callas na Sonâmbula não tem rival. Será a jovem Scotto, infelizmente ao vivo em gravação pirata com um som e elenco deficiente, quem melhor explora o personagem depois da Callas. Sutherland, Gruberova e Devia estão aquém das referidas se bem que a primeira por razões puramente vocais pertença a uma categoria à parte.
Da Dessay para além do dvd da Manon, Figlia del Regimento e Hamlet gosto especialmente dum cd de inicio de carreira onde canta as arias de concerto de Mozart.

Raul disse...

Imagina, João Ildefonso, que eu vi a Scotto em 1965 na Sonâmbula no Coliseu. Uma maravilha. Sim, ela será a melhor depois da Callas. Quanta à Sutherland, de que tive em LP a gravação com o Pavarotti e o Ghiaurov, e que não substituí quando vieram os CDs, estou plenamente de acordo contigo quando dizes que ela grande por razões puramente vocais. Esta versão tem uma prestações fabulosas da orquestra e dos coros.

J. Ildefonso. disse...

Raul

A geografia não impede a sintonia dos juizos, não é?:-)))
Há boas novas?