Pois bem, a verdade é que a dita reconciliação terá de sofrer mais um adiamento, posto que este Don Carlo deixou muito a desejar…
A opção de apresentar a versão da ópera em quatro actos é absolutamente legítima, mas comporta problemas. Desde logo, o espectador menos familiarizado com a obra terá dificuldade em compreender a lógica da trama, dado que o acto de Fontainebleau se encontra ausente. Há muito anos, em conversa com a mítica Karita Mattila, percebi a que ponto a ausência em questão era comprometedora. Aliás, Mattila recusava liminarmente interpretar a versão mais curta da ópera, ela que foi a maior Elisabeth de Valois dos últimos vinte anos – vide Don Carlos, sob a direcção de Pappano.
Começou mal a coisa, pois.
A encenação de S. Langridge roça o desastre, sobretudo pela transposição da trama para a época presente, mal conseguida, incoerente e trôpega. O jogo de ténis é absolutamente imbecil e causou embaraço no coro, quase estatelando uma das intérpretes no chão, que tropeçou numa das dezenas de bolas espalhadas pelo palco; lamentável. A gaiola / prisão (onde decorre o acto do auto-da-fé) é uma solução desastrosa, dramaticamente, mergulhando a trama no ridículo; inaceitável. Depois, há uma exploração do universo dark, que exaspera. Tudo é lúgubre…
Os cenários são foleiros, contando com detalhes pindéricos – a coroa sem cabeça, o túmulo do imperador, omnipresente, digno de um sem-abrigo, etc.
A direcção de Martin André foi trágica. Pergunto-me se o senhor em questão conhece a voz humana? Sistematicamente, a orquestra – em fortissimo – abafava os solistas, obrigados a berrar e esbracejar, para se fazerem ouvir. Entradas fora de tempo e desacertos, foi mato… Sem subtileza alguma, fomos bombardeados com uma sanfona ensurdecedora. Talvez André opte por mudar de vida! É que há feiras e circos ávidos de animadores musicais deste calibre…
O coro esteve coeso e harmonisos, particularmente inspirado no auto-da-fé.
Os solistas salvaram a honra do convento, com reservas…
Enrico Iori compôs um Filippo equilibrado e digno, austero e sofrido qb. Brilhou no Ella giammai m’ammo, bem acompanhado pelo violoncelo lírico, apesar do enquadramento cénico deplorável: levanta-se da cama, onde se encontra uma cortesã (?), em cuecas (!!!), compõe a fralda da camisa… fiquemos por aqui.
Don Carlo foi interpretado pelo jovial Giancarlo Mansalve. De um modo geral, cumpriu, abrilhantando a prestação com agudos ousados e afoitos. Embora a figura ajude, o jogo cénico torna a sua prestação pouco credível. Ladeou-o o Roderigo do grego Dimitri Platanias, também ele cumpridor e brioso, de voz lírica e melodiosa.
Ayk Martirossian propôs um Grand Inquisitor convencional, de voz baça e volume limitado. A pouca credibilidade da caracterização foi reforçada pela cadeira de rodas imposta pela imbecil encenação…
A Princesa Eboli foi interpretada pelo meio-soprano Enkelejda Shkosa, actriz versátil e generosa. Começou muito mal – Canzone del Velo -, com estridência e dificuldades na coloratura, terminando com um O Don Fatale correcto e digno. A voz apresenta limitações evidentes e sinais de desgaste, mas enfim…
Termino com a grande decepção da récita, a Elisabeta de La Matos.
A voz de Elisabete Matos é – no momento presente – enorme, volumosa e robusta. Estará em casa no território spinto, mas no lírico, a conversa é outra. Pagaria para não assistir a uma Amelia (Boccanegra) sua… Pago para não assistir a outra Elisabeta!
O vibrato da intérprete – omnipresente – incomodou-me muitíssimo, comprometendo a composição do personagem. Elisabeta é uma mulher digníssima, nobre e imaculada. A voz quer-se límpida e graciosa. Matos apresenta-nos uma Elisabete nos antípodas da concepção verdiana, terminando com um Tu che le vanità banalíssimo, sem ponta de elegância.
As boas-línguas disseram-me que a senhora se encontrava a recuperar de uma constipação. Pois seja, mas da decepção não nos livrou!
Pergunto-me se melhores dias virão, liricamente falando, para o nosso Teatro Nacional?
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(2,5/5)