A peça Amadeus (Schaffer, 1979) ganhou um inusitado folgo quando Milos Forman a adaptou ao cinema, em 1984. O maior feito da obra de Forman foi ecoar o génio de Wolfgang Amadeus, particularmente a lírica mozarteana, que se funde com a harmonia e perfeição.
O texto de Schaffer é bem conhecido de quase todos, propondo uma inverosímil relação entre Salieri e Mozart. A verdade histórica revela-nos um respeito mútuo de cada um dos criadores pela obra do outro. Aliás, para que dúvidas não restem, Bartoli, a Divulgadora, editou em meados da década um registo integralmente consagrado a Salieri, cuja lírica contém um interesse imenso.
Por sua vez, o texto de Shaffer inspirou-se em Pushkin (1799 – 1837) – Mozart e Salieri (1830) -, que serviu de base à ópera homónima, composta por Rimsi-Korsakov, levada à cena em Moscovo, em 1898.
No âmbito da actual temporada do Teatro Nacional D. Maria II, Diogo Infante – director artístico da companhia – leva à cena a peça, encenada por Tim Carroll.
O trabalho de Carroll contém algumas subtilezas interessantes, particularmente por enfatizar uma aspecto central da relação entre Salieri e Mozart. Dir-se-ia que o encenador torna consciente um fantasma homossexual que perpassa toda a obra. Salieri, d’après Schaffer e Carroll, é um perverso, que nutre por Mozart um amor e fascínio indisfarçáveis. Por via de uma parcialmente eficaz sublimação, a paixão de Salieri desloca-se para a produção artística mozarteana, que o compositor italiano venera, como ninguém. É também por acção do deslocamento que o Kappel Meister da corte austríaca procura materializar o amor por Wolfgang Amadeus, nomeadamente quando procura investir carnalmente sobre Constanze, esposa de Mozart. Uma vez mais, verdadeiramente, é Mozart que Salieri deseja!
A relação entre os dois homens reenvia, inevitavelmente, ao sado-masoquismo: Salieri, doentiamente invejoso, humilha e subjuga Mozart, destruindo-o, enquanto Mozart se submete, em nome da sobrevivência e fama. Não há parelha mais perfeita, no mais patológico dos sentidos.
O leitor mais atento verá, também em Shakespeare (Otelo), uma outra variante do amor homossexual perverso, que Iago tão bem representa. Iago ama e deseja Otelo, camuflando o amor com ódio.
Voltando ao labor de Carroll, creio que a explicitação do amor intolerável de Salieri transcende a parelha. Se assim não é, por que raio dota Tim Carroll todos os personagens masculinos de uma histriónica bichice? A que se devem os indisfarçáveis trejeitos e maneirismos da entourage masculina do imperador? Bien joué! Chapeau!!
No tocante aos intérpretes, sublinho a consistência da composição de Ivo Canelas (Mozart), que revela uma sólida progressão dramática. Menos feliz no acto I, onde exibe um histrionismo algo desajeitado, triunfa no derradeiro acto, particularmente no investimento que faz da corrosão. Quase dilacerante.
Diogo Infante (Salieri) demonstra grande eficácia e mérito na velhice e decadência da sua personagem. Inunda o Salieri novo de triunfo, inveja, perversão e destrutividade, com mérito. Contudo, não resiste aos tiques de vedeta, que se misturam com a desprezível tradição de certo D. Maria II: voz muito colocada, tom excessivamente declamado. A plateia rende-se aos seus encantos. Assim seria, também, caso o trabalho do talentoso Infante fosse uma merda...
O restante elenco cumpre, com brio, e de forma amplamente homogénea.
5 comentários:
Que linguagem !
O Dissoluto não faz parte do público do Dona Maria ?
André,
O que se passa com a linguagem???
Quanto ao D.Maria, faço parte do público, sempre que lá vou... Lapalisse não diria melhior ;)
Entre o aparecimento do filme Amadeus e a "divulgação" de Cecilia Bartoli passou-se bastante tempo, pelo que acho que foi principalmente o filme que veio ressuscitar Salieri dos compositores esquecidos . Eu, por exemplo, depois de ver o filme e uma década antes do disco da Bartolli, comprei a ópera "Les Danaïdes" com um elenco de primeira água e editada pela EMI.
Permita-me, caro Dissoluto, uma pergunta fora do tema deste Post:
Não vai ao Don Carlo no S. Carlos? :-)
Se me fizer o obséquio de responder, agradecia.
Afectuosamente,
LG
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