sábado, 29 de maio de 2010

Tosca – Met Opera House, 20 de Abril de 2010



Alinhavo esta crítica ao som da inspiradora Gala Bing, captada live from The Met, em 1972... De humor normalizado, refeito do orgástico périplo por New York City, eis-me de regresso ao meu espaço blogosférico!

A Tosca de Bondy é um assombro teatral, entre outras virtudes!

Abandonando os insuportáveis clichés de Zeffirelli, Luc Bondy investe numa concepção sombria, onde se mesclam sórdido, luxúria e trevas. Em lugar dos grandes cenários, saturados de realismo, o encenador suíço impõe espaços recatados, de dimensões mais reduzidas.

Os cenários são primordialmente grandes, apenas em altura, conservando-se os ambientes de câmara. Em permanência, há lugar à intimidade do teatro, sublinhando-se a mímica, o toque, o cruzar cúmplice de olhares...

Não sendo particularmente bela, a cenografia (Richard Peduzzi) revela-se teatralmente muito eficaz.

Definitivamente, Bondy é um dinamizador de tramas: dota Scarpia de uma luxúria incomensurável, enquanto Cavaradossi é feito poeta do grafismo. Tosca, essa, balanceia entre o recato do negro e o voraz do escarlate... O vermelho do vestido de Floria, no acto II, confunde-se com o do sofá déco, onde as putas do barão Scarpia se esparramam, obscenamente.



Vocalmente, como se previa, o brilho foi obra máscula... A sumptuosa Mattila cancelara, – arrisco – receosa do confronto com os titãs Terfel & Kaufmann...

Jonas Kaufmann compõe um Mario Cavaradossi absolutamente modelar. Cenicamente, a sua personagem expande-se entre o lirismo e o idealismo.

Movido pelo valores nobres, Kaufmann canta um Cavaradossi perfeito. Baritonal, a sua voz, de uma beleza infinita e considerável extensão, afronta os agudos com uma ousadia sem paralelo.

Entra em cena, interpreta uma Recondita armonia extraordinária, correndo os mais incríveis riscos. No acto II, os seus Vitoria, vitoria são a tal ponto arrojados e destemidos que desencadeiam uma incontrolável ovação. Termina tocado pela mão de Deus, inundando E lucevan le stelle de poesia...

Terfel fora, como é sabido, um dos responsáveis directos pela minha viagem.

Bryn Terfel está para a lírica actual como Visconti, Bergman e Buñuel estão para o cinema do século XX: figuras absolutamente singulares, que se demarcam da mundanidade pelas suas divinas qualidades. Desde o magistral Jochanaan, de Covent Garden (1992), cuja encenação contém o dedo genial de Bondy, que venero o barítono galês. Este intérprete único alia, como ninguém, a mais viril pujança vocal a uma delicadeza, versatilidade e subtileza teatrais extraordinárias!

A voz é um deslumbramento, rica em cor e matizes, sendo infinita em nuances...

A versatilidade e riqueza do seu Scarpia são assombrosas. Impregnado de sadismo, a sua personagem pavoneia-se, vomitando luxúria e lascívia a rodos. Sempre de peito erguido, qual pavão, o seu barão consegue atingir momentos de uma tal delicadeza – nomeadamente, quando investe sobre Floria -, que nem os passos se lhe ouvem! E como caminha, na sua majestade... como se movimenta...

Acredite o paciente leitor nas minhas rendidas e apaixonadas palavras: morre-se estúpido, antes de se assistir a uma – que seja apenas uma... – performance deste animal cénico!



Por fim, coube à corajosa Patricia Racette substituir aquela que seria o terceiro pilar de ouro desta produção, Karita Mattila, co-responsável pela constante delapidação das minhas parcas economias. Previsivelmente, Racette foi o elo mais fraco da récita.

A intérprete americana é uma cantora competente, sendo senhora de um timbre pouco acima do banal. Em esforço – fortissimo -, rapidamente tende para a estridência. Contudo, uma vez em cena, tudo muda: habita a sua personagem com uma ambivalência monumental! Sempre em conflito, em permanente debate interior, entre a volúpia, o recato... e a crueza absoluta.

Termino com uma justa referência à grandiosa direcção de Fabio Luisi, que propõe uma Tosca expansiva e teatral, porventura menos lírica... Mas ópera é, acima de tudo, teatro, grandiosidade e arrebatamento!

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* * * * *
(5/5)

9 comentários:

portasabertascadeirasaosoco disse...

benvindo grande dissoluto,nota-se ainda a água na boca dessa viagem ao paraíso.Um homem sortudo e acima de tudo d bom gosto.

J. Ildefonso. disse...

Querido João
Já tinha saudades. Também eu fiquei deslumbrado com o Kaufman quando o vi em Paris no Wherter. Ainda bem que a viagem foi recompensadora. O Terfel infelizmente nunca vi ao vivo mas gostei muito dele no Scarpia em dvd com a Malfitano.
Destaque também para a Racette que no meio desses titãs foi competente e não desmereceu.

Anónimo disse...

Caro Dissoluto,
O tenor puccinano, assim como em Donizetti, tem de ter a tal voz italiana por excelência, mais do que em Verdi, que deu as melhores páginas ao barítono. Claro está, estamos a falar de vozes masculinas. Agora e lendo a sua tão elucidativa crítica, eu pergunto, essa voz abaritonada de Kaufmann não compromete um pouco o seu Mário. Os tenores wagnerianos cantam bem algum Verdi, mas Puccini só se for o Calaf e mesmo assim...
Raul

Plácido Zacarias disse...

Caro João,
É um prazer poder comentar no seu blog.
Tenho pena de apenas ter estado no broadcast da Antena 2 e não num telecast, visto que -- até pelos barulhos cénicos que se ouviam -- parece ter sido um investimento sobretudo cénico.
Mas não acha que o arrebatador tom dito baritonal pode ser um pouco inconveniente? Acredito num Cavaradossi que não é tão negro. Por outro lado, também contemplo o aspecto que uma das ideias desta ópera (a minha eterna preferida) é que numa acção, é possível não haver nenhum bom...

Cumprimentos,
Bruno
operalisboa.blogspot.com

Hugo Santos disse...

Caro João,

antes de mais, deixe-me dar-lhe as boas-vindas às blogosfera. Há muito que ansiavamos pelo seu regresso.

Em relação ao texto, tendo por base as transmissões que escutei com Mattila/Alvarez/Gagnidze e Racette/Kaufmann/Terfel, concordo em larguíssima medida. Os intérpretes masculinos foram marcadamente superiores. No que concerne ao "confronto" Mattila/Racette, creio que a norte-americana, não obstante um instrumento de menor distinção, revelou uma melhor apreensão da personagem, vocal e dramaticamente. Pelo conjunto, atrevo-me mesmo a afirmar que a récita emitida pela rádio com a segunda tríade constituiu-se uma das melhores Toscas que ouvi nos últimos anos.

Caro Raul,

percebo perfeitamente o seu ponto de vista. Todavia, a conjugação das fundações baritonais da voz de Kaufmann com um registo agudo absolutamente fulgurante, evocando amiúde Corelli, a que acresce o aveludado da zona média e a segurança com que aborda diferentes dinâmicas, tornam o tenor germânico num caso sério. Em termos dramáticos, demonstra amplo engajamento.

Il Dissoluto Punito disse...

Raul,

Quando um Mario Cavaradossi nos leva às lágrimas, desde a sua entrada, baritonal ou tenor puro... Tudo se torna irrelevante!

J. Ildefonso. disse...

Não percebo muito bem essas distinções. O timbre do Kaufamn é escuro, aveludado, suculento e bastante individual a voz tem uma boa extensão e agilidade. Não é uma voz muito grande. Em alguns aspectos não é muito diferente do Domingo em jovem.
Acho-o adequado ao Mário da Tosca se bem que não seja uma escolha prudente.
Não será uma voz muito italiana, como o Pavarotti ou di Stefano mas acho que pode encontrar na ópera italiana terreno fertil para a sua arte.

Mr. LG, el Mister disse...

Já ´tava prontinho para dissertar aqui um calhamaço de Doutoramento :-D, quando, na minha modesta opinião, os comentários anteriores seus, Dissoluto, de Hugo Santos e João Ildefonso me disseram que tudo o que havia para dizer acerca da tão esperada récita da TOSCA escutada na Antena 2 já no passado dia 24 de Abril, já tinha sido dito.
Achei Racette too much a lyrical soprano. Faltou-lhe um tom mais escuro, mais sentido, dramático, volumoso, etc, etc,… para nos dar uma Tosca visceral. Isto sentiu-se (E MUITO!) no sacrossanto “Vissi d´Arte, Vissi d´Amore”.
Estridente nos agudos, Dissoluto? Não a achei. Achei-a sim, reitere-o, insuficiente vocalmente aqui e ali. Quanto ao seu “Io quella lama gli piantai nel cor” do IIIº Acto foi Bullseye! Bem no centrinho de uma das notas mais puxadas e agudas da Tosca e, se calhar, a que mais a expõe. A Callas que o diga, em 64 :-)
Quanto a Terfel, bem :-), ´tá tudo dito.
Herr Kaufmann deu-me o melhor ”Vittoria! Vittoria!” do IIºActo que eu já escutei desde há uns bons anos a esta parte. Nem Álvarez, embora Marcelo também não o desmereça. :-) Não escutava uma qualidade vocal nesta exultação triunfante de Cavaradossi desde o auge dos sagrados Three Tenors e bem merece um lugar digno na descendência dos Cavaradossis de Corelli, Bergonzi, Di Stefano.
Tem toda a razão, Dissoluto. Depois de se ter escutado o “Recondita armonia” no IºActo por Kaufmann, foi absolutamente e completamente HANDS DOWN! ;-)
Ansiamos todos por novas do seu Lohengrin em Bayreuth, no Verão deste ano, e pelo seu futuro Siegmund do próximo ano no Met e, em 2013, no templo sagrado de Wagner: o acima citado Bayreuther Festspielehaus – o Teatro do Festival de Bayreuth.
So pa´terminar dizendo: benvindo de novo às nossas vidas. Já estávamos a temer pelo pior, Dissoluto. Pensava eu, e se calhar também o nosso caro portasabertascadeirasaosoco se me permite ;-), pois então:
- Queres ver que ele partiu para o FaceBook ou para o Twitter?... :-D :-D
LG

Il Dissoluto Punito disse...

LG,

I got back, reaaaaaaaaaally ;-)