domingo, 13 de abril de 2008

Madama Butterfly: uma visão psicanalítica

Da malograda biografia de Cio-Cio-San – ossia Madama Butterfly -, detive-me, sobremaneira, na repetição: abandonada pelo pai, em criança, Butterfly toma-se de amores por Pinkerton, que não hesita em votá-la ao esquecimento.

Freud dissertou muito sobre a compulsão à repetição que, no essencial, se resume à circunstância de o indivíduo, de forma sistemática e inconsciente, se colocar em situações penosas, assim reproduzindo uma vivência antiga, cujo protótipo não recorda.

Ora, Madama Butterfly, rejeitada ab initio pelo pai – que optara pelo hara-kiri, abandonando a pequena -, por artes malignas da repetição, escolhe outro objecto abandonante: o oficial da marinha, que dela se serve momentaneamente, abandonando-a pouco depois, para desposar uma americana mais conforme aos olhos de uma certa moral.

Posto que sou psicanalista, profundamente avesso às explicações assentes na casualidade, insisto na tese do masoquismo de Madama Butterfly, que força a criatura a variantes do trauma original. O próprio modus vivendi de Cio-Cio-San deriva, directamente, da experiência originalmente traumática: gueixa, a rapariga entrega-se a homens, inevitavelmente mal-tratantes – no sentido do abandono -, que a colocam, de forma sistemática e repetida, sempre em contacto com o pai abandonante.

Aliás, curioso é assinalar, nesta linha, a herança pesada do pai, que não só coloca a filha desamparada à mercê dos clientes abandonantes, como a força ao inexorável destino do suicídio, perpetrado com o mesmo punhal de que o guerreiro paterno se servira!

Termino com uma última constatação, não menos horrenda, que atesta da força da citada repetição: à semelhança do que o pai com ela fizera, também Cio-Cio-San abandona o filho, como consequência do hara-kiri.

Trata-se, seguramente, de um caso de patologia transgeracional.


6 comentários:

Anónimo disse...

Com todo o respeito - e é muito - que esta análise me merece, eu faria outra abordagem do texto que serve de apoio à música da Mme Butterfly. Essa abordagem, mais próxima da análise literária, baseava-se num mundo que se confina somente ao texto, nada fora do texto. Fora disso, caímos logo numa armadilha: como é possível que Cio Cio San e Pinkerton comunicam? Quem fala a língua do outro ?
RAUL

Anónimo disse...

João, caríssimo, já agora, gostava muito de ler a tua opinião sobre a hipótese que explica o perfil da maior parte das heroínas puccinianas através da relaçao que tinha o compositor com a figura materna. Mosco Carner apontou isso há décadas e acho que não deixa de ter alguma razão: todas elas com algum "defeito" moral, à procura da redenção... Repara em que, acho, o pai de Puccini morreu quando era ainda criança.

Fiquei com vontade de te perguntar isto quando li o post em que confessavas que te tinhas convertido ao puccinianismo. Olha que é intoxicante!

O comentário anterior, assinado por Raul, fez-me pensar em que, de facto, a comunicação entre os amantes das suas óperas vem quase sempre dada pela paixão, no sentido mais puramente sensual do termo. Nada de verbo, é tudo carne: "O dolci baci, o languide carezze..."

Anónimo disse...

É verdade Puccini é por excelência o compositor da paixão física, basta pensar no longo dueto que conclude o 1º acto da Butterfly. Sempre tive curiosidade em conheçer a versão censurada deste dueto na encenação com a Freni/Domingo que descobri agora no Youtube e pasmei porque não tem nada de censurável, os ombros redondinhos da Freni e as costas do Domingo!, meditei e o que torna a cena intoxicante e erótica é a música não as imagens. Juntas têm um efeito potenciador obviamente mas as imagens só por si são completamente banais enquanto a música mesmo sem imagem já tem um efeito devastador.

J. Ildefonso.

Anónimo disse...

Também é interessante uma leitura antropológica da Butterfly sobre o confronto da cultura Ocidental e Japonesa...

J. Ildefonso.

Anónimo disse...

Sob o ponto de vista do confronto Ocidente-Oriente é interessante comparar com a Turandot. Enquanto o Ocidente (Pinkerton) aparece negativamente desrespeitoso perante um ingénuo Oriente(Cio Cio San), na Turandot o firme e voluntarioso Estrangeiro (Calaf) defronta-se com a crudelíssima e enigmática China (Turandot, Ping, Pang e Pong).
RAUL

Anónimo disse...

Às vezes há coincidências !
Vou a 10 de Maio ver a Madame Butterfly, aqui, no Grande Teatro Nacional de Pequim, referido neste blogue a 28 de Dezembro. Vou conhecer este magnífico exemplar de arquitectura e estou curiosíssimo pela encenação chinesa do mundo japonês e pelo elenco, que o desconheço já que o bilhete me foi oferecido. Também quero ver o público, já que os preços são altos para a China. O meu, que sendo plateia, representa um quinto do ordenado de um professor universitário em início de carreira.
RAUL