domingo, 2 de março de 2008

Peter Grimes: gay ou perverso?

No essencial, Peter Grimes - porventura a mais célebre ópera de Britten – versa sobre o conflito entre o indivíduo - homossexual e o colectivo - heterossexual.

Britten representa a diferença por via do carácter fortemente desadaptado da personagem principal, Peter Grimes, pescador de uma pequena comunidade inglesa, que se exclui / é excluído, em permanência. A exclusão – adivinha-se – é secundária à orientação sexual de Grimes.

De notar que, no poema original de George Crabbe, The Borough, Peter Grimes surge retratado como pederasta. Foi Britten que sugeriu ao libretista, Montagu Slater, a omissão explícita deste traço.

Britten, juntamente com o libretista, opta por conceber uma personagem que, embora conserve a conflitualidade e ruptura com o mundo exterior, surge eminentemente retratada como vítima.

Do trabalho conjunto entre compositor e libretista resulta uma figura altamente ambígua, que coloca o espectador na dúvida: agressor – pedófilo vs agredido – ostracizado; homossexual – pederasta vs heterossexual ?

Fundamentalmente, Peter é dominado por uma mecanismo muito arcaico – identificação com o agressor -, que pressupõe a conversão do masoquismo em sadismo: o sujeito maltratado, mais tarde, torna-se num maltratante.

Ora, Grimes, relativamente aos meninos desabrigados que acolhe como seus aprendizes, mais não faz do que assumir a posição dominante, de agressor – violador. De início, o mesmo Peter Grimes fora excluído, ostracizado pela comunidade...

Incapaz de romper com este esquema patológico, fortemente ditado pela compulsão à repetição, Peter Grimes excluído e ostracizado converte-se num poderoso agressor, abusador!


Enfim, considerações clínicas à parte, a citada ópera de Britten teve honras de uma nova produção, no Met, contanto com o soberbo Anthony Dean Giffey na pele de Peter Grimes.

«Few operas explore ambiguity with more piercing clarity and musical specificity than this 1945 work. The title role was conceived for Britten’s longtime partner, Peter Pears. With his hauntingly ethereal tenor voice, Pears portrayed the fisherman as an alienated dreamer, a misfit in an uncomprehending town, who, yearning to be accepted, takes out his thwarted anger on the homeless boys who are drafted into work as his apprentices.

Then, in the late 1960s, Mr. Vickers claimed the part, completely altering the public’s perception of it. This powerful heldentenor revealed the danger within the twisted psyche of the ostracized fisherman. His Grimes was volatile, wild and craggy, one moment lost in vague reveries, the next erupting with brutality.»

Mr. Griffey, even though his voice has heft and carrying power, is essentially a lyric tenor. And it is disarming to hear the role sung with such vocal grace, even sweetness in places. Every word of his diction is clear. You sense Grimes’s dreamy side struggling to emerge. The moments of gentleness, though, make Mr. Griffey’s impulsive fits of hostility, his bursts of raw vocal power, seem even more threatening.

Mr. Griffey is tall, husky and a little baby-faced. But he uses his appearance to poignant effect in his portrayal. You could imagine the tubby child that this Grimes once was, picked on by bullies. But now a hulking and ostracized adult, he has become, against his will, like the bullies who tormented him. In the scene with the endearing apprentice boy (Logan William Erickson, in a nonsinging role) you almost wanted to avert your eyes as Mr. Griffey alternately smothered the child in an embrace, then slapped him to the floor in an unhinged outburst.
»


Termino com quatro dos mais destacados intérpretes do papel titular de Peter Grimes, que enumero por ordem cronológica: Jon Vickers, Philip Langridge, Ben Heppner e Anthony Dean Griffey.


3 comentários:

Paulo disse...

Não conheço o Grimes de Heppner, de Griffey ouvi um excerto no site do New York Times e pareceu-me muito bem. Langridge foi excelente neste papel, mas Vickers e Pears estão lá no topo.

Anónimo disse...

Não aprecio Britten. Comprei uma ópera dele, Billy Budd, porque num filme, Beau Travail, embora no mundo da Legião Estrangeira, tinha uma temática homossexual implícita muito forte, havia um coro de que gostei bastante. No fim de contas de toda a ópera foi a única parte de que gostei. De um modo geral não gosto de música inglesa, não de Inglaterra (Haendel). Brahms dizia que não havia música inglesa.
RAUL

Teresa disse...

Brahms morreu cedo demais para ter escutado Britten, isso é um facto...

Se calhar, isto é apenas uma opinião, Billy Budd não seja o melhor começo: e The Turn of the Screw? A mim parece-me uma das melhores óperas do século XX e a melhor do próprio Britten. Aprecio, não apenas o rigor formal e génio dramático do compositor, mas também a densidade psicológica - passe isto no blog do João... - que Britten transmite através da sua música, particularmente nessa obra. Está a versão com Pears, mas também a da Naxos.

No entanto, Britten é puro teatro: tem de ser representado, só através da escuta fica bastante aquém do que realmente é. Por exemplo, na temporada do Teatro Real, The Rape of Lucretia vai caminho de poder ser considerada o espectáculo do ano.