sábado, 15 de dezembro de 2007

Rigoletto, Teatro Nacional de São Carlos, récita de 14 de Dezembro de 2007

Na ópera, como em quase tudo, faço minha a máxima de S. Tomé, Ver para Crer.
Dir-me-á o atento leitor que, no respeitante à produção de Rigoletto ora em cena no São Carlos, unanimidade tem sido a palavra-chave, em termos de crítica: a dita cuja enferma de uma inimaginável mediocridade.

O certo é que, muito dos que agora idolatram e enaltecem o trabalho do anterior director do Teatro Nacional de São Carlos, Paolo Pinamonti, são os mesmos que, ao longo de inúmeras temporadas, questionaram de forma vil o trabalho do mesmo Pinamonti. O senhor que se seguiu, para o bem e para o mal, tem a infelicidade de ser comparado com o grande (?!) Paolo Pinamonti! Deus na no céu, Pinamonti na terra...

Pois bem, com bilhetes adquiridos de antemão e guiado pela máxima de S. Tomé, fiz-me à estrada, embora com os ouvidos e olhos parasitados pela critica avassaladora.

Desde já confesso a minha surpresa diante de tudo aquilo a que assisti, na récita de sexta-feira, 14 de Dezembro de 2007. O impensável e inconcebível, num teatro nacional, aconteceu...

Ao menos uma vez na minha existência de quase 37 anos, senti-me um Vasco Pulido Valente, uma Maria Filomena Mónica, uma Clara Ferreira Alves – isto para não citar alguns bloggers...
-, posto que me vi num mundo dominado pela maior das misérias que a humana criatividade pode conceber. A experiência de viver rodeado de merda deve ser abominável. O certo é que assim me senti, ao longo da récita de ontem à noite.


Pois bem, vamos a factos.
Em meu entender, de uma coisa não pode a presente produção de Rigoletto ser acusada: a de falta de coerência. O equilíbrio, a harmonia e a coerência dominaram a coisa, evidentemente nivelados pela fasquia mais reles que imaginar se pode.

A encenação de Sagi, apesar das veleidades, é medíocre e abortada, não escapando aos habituais lugares-comuns: um Rigoletto balanceando entre o vermelho – pecaminoso e o não-vermelho – humanizante, uma predominância das clivagens – Gilda-diáfana, pura e clara, vs homens-desalmados-a-negro e putas-escurecidas -, por exemplo.

Quanto ao resto... luzes ineficazes (Eduardo Bravo); figurinos de gosto deplorável e escravizados pelos habituais clichés – dourados, veludos, mangas de balão, etc. – (Miguel Crespi); cenografia feia e raramente eficaz – a cama, a estalagem -, quando não imperceptível – a segunda cena do acto I (Ricardo Sanchéz Cuerda); direcção de actores abominável, primando pela movimentação estéril e trôpega – todos gesticulam sem sentido, gratuitamente, assim pretendendo exprimir os respectivos estados de alma!!!

Neste capítulo, o melhor de tudo foi a barulheira que acompanhou as mudanças de cenário, digna de um teatro itinerante. Ainda acalentei a esperança de ouvir um martelo pneumático...


No capítulo das vozes, contrariamente ao que previra – Pirgu e Agache -, atingiu-se a calamidade.

Agache, outrora um grande barítono verdiano – Amonasro, Rigoletto, Conte di Luna e Simon Boccanegra, entre outros -, revelou uma decadência confrangedora, ilustrativa de um final de carreira há muito anunciado: sem folgo, com uma voz envelhecida e (des)governada por um vibrato selvático, sem cor nem sombra de elasticidade. O Cortigiani foi desastroso, decrépito...

A isto acrescente-se uma ausência de dotes histriónicos mínimos, materializada numa incarnação dramática inexistente, entre outras, apoiada numa mímica ridícula. Um cantor acabado, num actor de pacotilha, eis, em síntese, a prestação do cantor romeno.

A Gilda de Schill – a primadonna do TNSC!!! – desencadeou em mim o mais horrendo dos sentimentos: pena e compaixão. Ainda pensei pateá-la, mas a piedade assim não o quis...

Actriz esforçada e minimamente dotada – há que reconhecê-lo -, cantora medíocre, a criatura exibiu uma técnica... inexistente. No Caro Nome, baixei a cara, tapei os olhos e tive a pontos de abandonar a sala. Notas falhadas, agudos estridentes e berrados, ornamentação caótica... falhou redondamente no lirismo, no spinto, na emissão...

Salmir Pirgu – o grande, grande e promissor Ferrando do Così da temporada passada -, pese embora a densidade da interpretação – compôs um Duque vil e pavão, bem caracterizado – decepcionou na voz: apesar de ampla e bem projectada, revelou falta de estilo e craveira verdiana. Sob o signo da inconstância...

Quanto aos demais solistas, primaram pela mediocridade, particularmente o Sparafucile de Lynkovsky - não vou tão longe quanto a máxima "um baixo sem ré de porco não é um baixo", mas ao menos que o dito tenha graves!!! -, à excepção do digno e esforçado Monterone de Luís Rodrigues.

E para encerrar, o caos!

A direcção de Polianitchko revelou um desgoverno inadmissível, com naipes à rédea solta, sem a mínima coesão. O mestro foi o maior dos inimigos dos solistas, abafando-os, desenquadrando-os.

Já no coro, a regra foi cada um por si.


Enfim, diria que este cénica, vocal e musicalmente trágico Rigoletto augura uma temporada previsivelmente desastrosa.

Verdi foi vilipendiado, e bem assim os espectadores que, contrariamente ao que por aí se diz, não papam tudo! Apesar de um ou outro bravo – certamente proveniente de persistentes ignorantes, militantes -, da profusão de peles e madeixas, a gélida recepção com que se brindaram os artistas foi deveras clara.

Há muitos anos que não me sentia tão defraudado...

5 comentários:

Paulo disse...

João, bravos à Chelsey Schill quando ela entra para agradecer no final... bravos e fortes aplausos a Agache depois de "Cortigiani", fortes aplausos depois do quarteto. Para mim, foram demasiados aplausos. Se alguns espectadores não se manifestaram e não paparam tudo, ainda ficou a imagem de um público em geral muito contente.

Il Dissoluto Punito disse...

Paulo,

Mas, ainda assim, nada que se compare com outros deslumbramento, não?!

Moura Aveirense disse...

Que tristeza pagar para ouvir um espectáculo desses... ainda bem que não fui.

Paulo disse...

João.

Não se compara com outros deslumbramentos, mas senti o volume dos aplausos a subir quando me apetecia patear.

Como diz Augusto Seabra, este público é amorfo.
De acordo: reage ao muito bom ou ao muito mau da mesma maneira. Ou quase.

Anónimo disse...

Fui assistir hoje, dia 16, à récita do Rigoletto. A produção, encomendada pelo Sr Pinamonti, é igual a todas as outras que nos serviu... duma banalidade exasperante sem uma única ideia que seja. Ou pelo menos sem uma única ideia que não tenha já sido explorada por uma série de produções nos últimos 40 anos! A cantora é muito interessante porque é muito democrática, canta igualmente mal as notas escritas por Verdi e as notas que não foram escritas por Verdi! Para quê dar agudos alternativos ou de tradiçao se sao notas feias, trémulas, estridentes e mal projectadas?
O tenor tem potencial, começou mal mas ganhou segurança e cantou muito bem "ela mi fu rapita".
O Agache está muito degradado desde o Trovador ou desde a Aida de 1999, onde foi verdadeiramente grandioso. Como todos os cantores com uma voz grande e pouca elegância ou talento de fraseador perde o interesse assim que perde a potencia vocal ou o apelo timbrico. Mesmo assim hoje esteve bem e emprestou alguma distinção à récita. Orquestra completamente "adormecida", coro calamitoso... na mais obscura Frascheta de Italia encontra-se um coro com maior brio! Maestro "ausente". O HABITUAL! O público hoje não gostou. Quase não aplaudiu excepto o meu sobrinho que só quis regressar a casa depois de ir aos bastidores ver como tinham feito a corcunda do Rigoletto!


J. Ildefonso.