sábado, 27 de janeiro de 2007

Da Mania

Na lírica, as mudanças de registo vocal não são tão invulgares quanto isso!

A passagem dos anos, geralmente, é acompanhada de ganhos e perdas vocais.

Com frequência, os agudos são os primeiros a exibir sinais de fadiga e comprometimento. Por essa razão, assistimos a algumas mudanças de registo de voz. O mor das vezes, as mudanças seguem o trilho da "gravidade", dado que, como é sabido, os agudos saltam cedo...

Como exemplos desta mudança, de cor, cito Varnay, Mödl e Rysanek, que passaram de soprano a mezzo, e Vinay, que passou de tenor a barítono.
O caso de Bergonzi é menos vulgar, pois debutou como barítono, rapidamente passando ao registo agudo, de tenor.

Casos há, porém, em que os intérpretes não chegam a optar por um registo dominante, abordando papeis de registos diferentes, ao longo de anos (vide Bumbry, ora Tosca, ora Abigaille, ora mezzo-verdiano - Amneris, Eboli -, Dimitrova, que acumulava Amneris com Turandot e Meier, hoje Isolda, amanhã Eboli, depois Kundry, Santuzza...)

Vem esta prosa a respeito desta notícia, onde se anuncia uma encarnação baritonal de Domingo, que interpretará Simon Boccanegra, da ópera homónima de Verdi.



Em abono da verdade, a voz de Plácido Domingo sempre revelou traço baritonais, circunstância que determinou a sua cruzada feliz pelo território heldentenor - Siegmund, Parsifal, Tannhäuser, a par do recente Tristan (que jamais abordou em cena) -, paralela ao notável investimento na área do tenor lirico-spinto, de que o papel titular de Otello constitui o exemplo sumo, a meu ver.

Em Domingo, a idade tem vindo a escurecer a voz, a olhos vistos.

A citada notícia, que dá como certa sua encarnação de Boccanegra, embora não me invada de perplexidade, suscita-me algum receio.

Em 2001, assisti deslumbrado ao seu Parsifal, numa inesquecível récita no Met.
Na época, já com sessenta anos em cima, a sua extraordinária veia artística permitiu-lhe assumir um papel absolutamente identificado com a inocência e puerilidade.

Todos sabemos que o tenor espanhol se gaba da sua invulgar extensão em matéria de repertório - em tempos, creio que mantinha, no activo, mais de 100 papeis distintos! Inesgotável, Domingo tem ainda a seu cargo a direcção artística de duas óperas americanas, para além de reger orquestras, como maestro...

Dir-me-ão que este carácter hipomaníaco coexiste com sinais de humildade. Assim é.

De facto, depois de se ter comprometido a assumir, em cena, Tristan, sob a batuta de Baremboim, em Bayreuth, o intérprete recuou, revelando que tal encarnação seria fatal para a sua voz.

Fez um compromisso, acedendo a interpretar o herói wagneriano, apenas em disco, com Pappano. Fez muito bem!

A infatigabilidade e hiperactividade - termo tão em voga - de Plácido Domingo, a par da sua longevidade vocal e cénica, em termos psicológicos, devem ser lidas, obviamente, no registo da hipomania, que clinicamente se encontra nos antípodas da depressão.

Em boa verdade, sabe-se que a mania e suas variantes clínicas - hipomania, inclusive - mais não são do que defesas contra a depressão.

Pergunto-me, então, se este investimento em novos territórios não constitui uma negação do envelhecimento, tributário do declínio, materializando uma eficaz luta contra as angústias de morte, que acompanham o indivíduo, quando a eternidade se desvanece - lá pelos cinquenta e muitos, sessenta anos, digo eu.

Posto isto, com ou sem hipomania, só posso desejar-lhe felicidades na sua encarnação baritonal verdiana.

Aqui para nós, lá para os setenta - que não tardam muito... - ainda vai dar cartas como Iago!

É esperar...

By the way, fica um esclarecimento: Domingo iniciou a sua carreira como barítono, rapidamente transitando para o registo de tenor, qual Carlo Bergonzi.

Tratar-se-á de um regresso às origens???

1 comentário:

Anónimo disse...

Excelente poster.
Mais alguns exemplos:
Bastianini foi inicialmente um baixo, cantando o Don Basílio, por exemplo.
Regine Resnik foi no início da carreira um soprano, cantando a Sieglinde, passando àquele mezzo cheio de graves dramáticos ilustrados na sua imortal Klytemnestra.
Paolo Silveri, muito activo no início,da década de 50 e com presenças em estúdio (Gioconda, com a Callas, Tosca, com a Stella, Don Carlo, Guilherme Tell, Nabucco, Simão Boccanegra, ...)começou baixo, passou a barítono e ainda tentou o Otelo, regressando sensatamente ao registo barítono.
Para mim, o problema do Placido Domingo cantar barítono é externo e daí eu não apreciar o seu Fígaro.O grande tenor habituou os nossos ouvidos ao seu maravilhoso timbre nesta tão longeva carreira, dando testemunho de quase tudo o que se escreveu para tenor lírico, lírico-dramático e heldentenor, que ouvi-lo em papel baritonal nunca nos vai fazer esquecer que é um tenor a cantar um papel de barítono.
Raul Andrade Pissarra