sábado, 16 de setembro de 2006

Mozartiana(o)s... A propósito da androginia de Kozená

Em pleno ano de comemorações mozartianas, eis um dos mais aguardados registos discográficos da rentrée!


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Em meu entender, a actual geração de cantoras líricas conta com destacadas intérpretes mozartianas: Fleming, Bartoli, Bonney, Graham, Kasarova e Garanca, além de Kozená, cuja veia mozartiana merece uma discussão mais profunda...

Pessoalmente, no que ao compositor em questão concerne, impressionam-me as três primeiras.



Se é verdade que Fleming (soprano) é algo superficial, nunca é de mais sublinhar a pureza do timbre, a par da voz infinitamente redonda e luminosa, atributos que combinam na perfeição com o Mozart puramente lírico - Condessa, Fiordiligi, Donna Elvira, Pamina, etc.

Já Bartoli (mezzo-sopramo) investe noutra linha. Combina agilidade e lirismo como ninguém, acrescentando uma espessura temperamental vincada às suas interpretações.

Na minha perspectiva, Cecília Bartoli é a mais fina representante do Mozart - latino. As encarnações de La Bartoli contêm todas, sem excepção, garra, sangue fervilhante e fogosidade a rodos.

Bonney (soprano) - que já teve tempos mais felizes... -, como ninguém, é terna, muito doce e envolvente.

Prosaicamente, diria que Fleming cintila, Bonney adocica e Bartoli enerva, voilà!

Haverá espaço, neste contexto, para outras intérpretes? Seguramente! A prova reside na geração ora emergente, que Garanca e Kozená (esta última não sem reserva...) tão bem representam.

Vem esta longa prosa na sequência do registo de Magdalena Kozená integralmente consagrado a Mozart.

Há um bom par de anos, Kozená levantou a ponta do véu do seu Mozart...

Numa palavra, fascinou-me! O seu lirismo, contido, algo floral, cintilante, prefigurava uma intérprete mozartiana de mão cheia!
Num ápice, imaginei um Sesto heróico, um Cheru
bino audacioso, quiçá uma Vitellia mais humanizada do que o habitual...

Mas, Salzburgo - edição de 2002 -, contra todas as expectativas, revelou um Kozená-Zerlina decepcionante...

Doravante, vá-se lá saber por que razão (!?), a bela Magdalena apontou baterias a Handel, triunfando, nomeadamente como Cleópatra (Giulio Cesare); paralelamente, (re)investiu em Gluck, por exemplo como Paride (Paride ed Elena), onde se fundiu com a glória!
Fez muito bem, digo eu!!

Nos últimos tempos, por força das comemorações mozartianas, regressou a Mozart em dois momentos. Primeiro, pela mão de Mackerras, gravou um extraordinário Sesto, disciplinadíssimo e certeiro na coloratura, além de melodioso e translúcido na expressão. Mais tarde, partilhou com o marido - Simon Rattle - um registo de árias de ópera e concerto de Wolfgang Amadeus Mozart.

Centremo-nos, agora, neste último registo, que justificou o (já muito longo) post.

Magdalena Kozená tem, em absoluto, todos os requisitos vocais e técnicos para abordar Mozart. Não sei se poderei dizer o mesmo, com igual convicção, dos seus atributos artísticos (interpretativos e dramáticos)...

A voz - muito aberta, magra, fina e delgada, de grande elegância e brilho, cristalina, com um toque algo pueril e assaz diáfano, roçando o andrógino - corresponde, na perfeição, ao registo de mezzo lírico mozartiano - travestido (Ludwig, dos primeiros tempos, Von Stade, Von Otter, Kirchslager, por exemplo), registo que se consubstancia em personagens como sejam Cherubino, Idamante (Idomeneo), Cecilio (Lucio Silla), Sifare (Mitridate, Re di Ponto) e Sesto.

Ora, no presente registo discográfico, Kozená aborda algumas personagens que se encontram aquém e além da sua tessitura e dotes interpretativos. Falo de Suzanna, Vitellia e Fiordiligi, por exemplo. O risco deste projecto é, pois, indiscutível.

Paralelamente, são ainda encarnadas figuras (femininas) mais buffas do mesmo repertório, que convocam humor fino, ironia e malícia - Dorabella e Despina.

Em meu entender, o registo Mozart Árias - inquestionavelmente arrojado, pelos riscos - impressiona, ma non tropo!

É verdade que a voz conserva o brilho e luminosidade de sempre, mas interpretar Mozart é bem mais difícil e sério do que parece, exigindo muito mais do que uma disciplina vocal sólida, que Kozená possui, sem sombra de dúvida!

Falta-lhe, antes de mais, feminilidade, ousadia, malícia e capacidade de sedução, na construção das personagens femininas - o calcanhar-de-Aquiles deste projecto!

Diria que Madalena Kozená peca por um certo anonimato sexual, presa que se encontra da androginia.

Um toque picante, mais teatral, nas interpretações, seria o bastante para retirar as personagens da indiferença e limbo afectivo!

Gosto de uma Susanna mais solta e atrevida - não tão bem comportada -, de uma Despina sábia e matreira, de uma Dorabella mais feminina e habitada - que aqui soa a rapazinho!!! -, de uma Vitellia fêmea - condoída, de uma Fiordiligi menos neutra!

Em contrapartida, o Cherubino, apesar do excesso de liberdades, é audacioso e palpitante, levando a melhor!

Em duas palavras, diria que, lado-a-lado com uma disciplina e sanidade vocal inquestionáveis, caminha uma parca feminilidade.
Se é verdade que a voz é graciosa, as mulheres de Kozená mais parecem criaturas de identidade sexual dúbia (para não dizer aprendizes de camionistas, pese embora o meu exagero!)...

Definitivamente, em minha opinião, este projecto vem provar duas coisas: Kozená não é uma intérprete teatralmente versátil - escapa-lhe o buffo, sendo certo que triunfa no serio; para além disso, à semelhança de Von Otter, o seu futuro profissional passa, indubitavelmente, pelos papeis travestidos (sublinho o travestismo profissional, pois que a sua feminilidade e beleza falam por si, não suscitando quaisquer dúvidas!).

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