A minha triplice condição de homem, pai e psi levou-me a uma leitura diferente do libreto de Adriana Mater, última ópera de Kaija Saariaho.
Eis, em síntese, o essencial da trama, nas palavras do The New York Times (conforme se pode ler, aqui):
« Adriana Mater is raped by a soldier from her own community. Ignoring the advice of her sister, Refka, Adriana refuses an abortion and rears a son, Yonas, to believe that his father died a war hero. At 17, he learns the truth. When the man, Tsargo, returns to the village, Yonas decides to kill him.
(?)
Divided into seven tableaus, the opera opens with Adriana (the Irish mezzo-soprano Patricia Bardon) rebuffing the advances of a drunken villager, Tsargo (the Danish bass Stephen Milling).
In the second tableau, Tsargo returns as a soldier and, when Adriana again rejects him, he bursts into her home and rapes her. In the third scene, with Adriana now pregnant, Refka (the Norwegian soprano Solveig Kringelborn) chastises her for bearing the son of a monster. But Adriana responds: "It is not his child, Rekfa, it is mine."
The remaining four tableaus take place 17 years later, when Yonas (the Canadian tenor Gordon Gietz) sets out to kill his father. "If he must kill him, he will kill him," Adriana responds with resignation.
But this is where the opera turns from despair to hope.
Yonas cannot bring himself to kill Tsargo, now old and blind. Feeling he has betrayed his mother, he begs her forgiveness. But now, at last, Adriana is sure that her blood flows through Yonas's veins. "This man deserved to die, my son, but you did not deserve to kill," she says. And taking her son in her arms, she concludes: "We are not avenged, Yonas, but we are saved? »
***
Ensinou-nos mestre Freud a ver para lá do evidente... O mesmo é dizer que, alem do conteúdo manifesto - de um sonho, de uma criação literária... e de um libreto, por que não?! - há um conteúdo latente, sendo este o revelador da expressão e dinâmica inconscientes.
Caso o leitor adopte este modelo de análise, verá que nem sempre o que parece, é!
A meu ver, tal é o caso de Adriana Mater !
Em superfície - ao nível manifesto, para retomar a terminologia freudiana -, a ópera versa sobre a supremacia de valores como a abnegação, a devoção e o espírito de sacrifício sobre a brutalidade e o primitivismo.
(Tsargo e Adriana: negro vs branco, tributários de uma clivagem entre obscuro e virtuoso)
Tretas e mais tretas!
Detenhamo-nos, agora, numa interpretação mais profunda da trama, depurada de leituras romanceadas, bem ao jeito do socialmente correcto.
Subjacente aos acontecimentos descritos, em tom literário, é óbvio o confronto entre poderes: Adriana-fémea-mãe, estóica, por via do sacrifício(?!) e do amor maternal(?!), mulher determinada, ainda que dorida (opta por dar vida (?!) a um filho, gerado na sequência de uma violação), contrasta com a destituição de simbólica fálica de Tsargo-homem-pai (alcoólico, velho e cego, ainda que militar, outrora), figura por demais frágil.
Desde logo, Yonas surge como um projecto narcísico, fruto de um desejo exclusivo de Adriana que, sozinha, faz uma escolha: ter um filho dela, só.
A forclusão do paterno é por demais evidente!
Mas a coisa não fica por aqui...
No futuro, prosseguindo a lógica narcísica da «heroína», Yonas será investido como um prolongamento de si mesma; materialização omnipresente do ódio, o jovem tem um mandato inexorável: o parricídio.
O desejo da morte de Tsargo condensa, em simultâneo, a aspiração omnipotente de Adriana, que assim triunfa heroicamente sobre o masculino - paterno e se vinga, por interposta pessoa... sem sujar as mãos!
Adriana fêmea - mãe (re)triunfa sobre o masculino - pai / filho!
Caro leitor, lamento a brutalidade das minhas considerações...
A verdade, verdadeira - na minha óptica, claro está! - é que esta criação lírica assenta num libreto que desvirtua o masculino / paterno - identificado com a brutalidade e a guerra -, enaltecendo o virtuosismo de uma maternidade omnipotente e gloriosa, que se oculta sob o manto diáfano dos bons valores.
Adriana Mater é, para mim, a versão das «produções independentes» (leia-se, filhos-sem-pai), que as novelas brasileiras dos idos anos 1980 propagandearam, despudoradamente, diante de um público escandalosamente acrítico.
Eis, em síntese, o essencial da trama, nas palavras do The New York Times (conforme se pode ler, aqui):
« Adriana Mater is raped by a soldier from her own community. Ignoring the advice of her sister, Refka, Adriana refuses an abortion and rears a son, Yonas, to believe that his father died a war hero. At 17, he learns the truth. When the man, Tsargo, returns to the village, Yonas decides to kill him.
(?)
Divided into seven tableaus, the opera opens with Adriana (the Irish mezzo-soprano Patricia Bardon) rebuffing the advances of a drunken villager, Tsargo (the Danish bass Stephen Milling).
In the second tableau, Tsargo returns as a soldier and, when Adriana again rejects him, he bursts into her home and rapes her. In the third scene, with Adriana now pregnant, Refka (the Norwegian soprano Solveig Kringelborn) chastises her for bearing the son of a monster. But Adriana responds: "It is not his child, Rekfa, it is mine."
The remaining four tableaus take place 17 years later, when Yonas (the Canadian tenor Gordon Gietz) sets out to kill his father. "If he must kill him, he will kill him," Adriana responds with resignation.
But this is where the opera turns from despair to hope.
Yonas cannot bring himself to kill Tsargo, now old and blind. Feeling he has betrayed his mother, he begs her forgiveness. But now, at last, Adriana is sure that her blood flows through Yonas's veins. "This man deserved to die, my son, but you did not deserve to kill," she says. And taking her son in her arms, she concludes: "We are not avenged, Yonas, but we are saved? »
***
Ensinou-nos mestre Freud a ver para lá do evidente... O mesmo é dizer que, alem do conteúdo manifesto - de um sonho, de uma criação literária... e de um libreto, por que não?! - há um conteúdo latente, sendo este o revelador da expressão e dinâmica inconscientes.
Caso o leitor adopte este modelo de análise, verá que nem sempre o que parece, é!
A meu ver, tal é o caso de Adriana Mater !
Em superfície - ao nível manifesto, para retomar a terminologia freudiana -, a ópera versa sobre a supremacia de valores como a abnegação, a devoção e o espírito de sacrifício sobre a brutalidade e o primitivismo.
(Tsargo e Adriana: negro vs branco, tributários de uma clivagem entre obscuro e virtuoso)
Tretas e mais tretas!
Detenhamo-nos, agora, numa interpretação mais profunda da trama, depurada de leituras romanceadas, bem ao jeito do socialmente correcto.
Subjacente aos acontecimentos descritos, em tom literário, é óbvio o confronto entre poderes: Adriana-fémea-mãe, estóica, por via do sacrifício(?!) e do amor maternal(?!), mulher determinada, ainda que dorida (opta por dar vida (?!) a um filho, gerado na sequência de uma violação), contrasta com a destituição de simbólica fálica de Tsargo-homem-pai (alcoólico, velho e cego, ainda que militar, outrora), figura por demais frágil.
Desde logo, Yonas surge como um projecto narcísico, fruto de um desejo exclusivo de Adriana que, sozinha, faz uma escolha: ter um filho dela, só.
A forclusão do paterno é por demais evidente!
Mas a coisa não fica por aqui...
No futuro, prosseguindo a lógica narcísica da «heroína», Yonas será investido como um prolongamento de si mesma; materialização omnipresente do ódio, o jovem tem um mandato inexorável: o parricídio.
O desejo da morte de Tsargo condensa, em simultâneo, a aspiração omnipotente de Adriana, que assim triunfa heroicamente sobre o masculino - paterno e se vinga, por interposta pessoa... sem sujar as mãos!
Adriana fêmea - mãe (re)triunfa sobre o masculino - pai / filho!
Caro leitor, lamento a brutalidade das minhas considerações...
A verdade, verdadeira - na minha óptica, claro está! - é que esta criação lírica assenta num libreto que desvirtua o masculino / paterno - identificado com a brutalidade e a guerra -, enaltecendo o virtuosismo de uma maternidade omnipotente e gloriosa, que se oculta sob o manto diáfano dos bons valores.
Adriana Mater é, para mim, a versão das «produções independentes» (leia-se, filhos-sem-pai), que as novelas brasileiras dos idos anos 1980 propagandearam, despudoradamente, diante de um público escandalosamente acrítico.
2 comentários:
Caro,
Muito interessante e prazenteiro de ler, mas entao e o facto da Adriana ter sido violada?
Eu introduziria na tua historia uma especie de economia das emocoes (ou melhor, dos afectos), i.e., a violacao serve de moeda de troca contra essa apropriacao do filho, tornado producao independente, la' esta', valor fiduciario que apenas perde importancia face 'a desvalorizacao final (velhice, cegueira) do perpetrador dos factos malevolos. Ficamos assim num balanço perverso, mas equilibrado, entre projecto materno puro e o mal que lhe deu origem. Resta ver que a opçao B, de Refka, implicaria duas perdas para Adriana - depois de violada teria de abortar, abdicando da possiblidade futura de um hipotetico anjo vingador.
Podemos tambem conjecturar sobre o que aconteceria se em vez de um Yonas viesse ao mundo uma Yoanessa. Transformar-se-ia o projecto de vingança em impossibilidade?
Caríssimo DL,
Muito me agradou o teu comentário!
Os psis adoram ser lidos por não-psis ;-)))
Bom, o que dizer... Creio, antes de mais, que a cena da violação só "abona" em favor da pobre Adriana, corroborando a sua interminável condição de vítima da brutalidade masculina - que mais não é que fragilidade!!!
Mais te digo não ser casualidade a escolha de UM filho!
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