segunda-feira, 28 de março de 2011

Lucia di Nuova York! (III) - 19 de Março de 2011, Met Opera House, via Fundação Calouste Gulbenkian

Dando cumprimento à promessa de há dias, eis a minha visão da Lucia di Lammermoor, em cena no Met.


Há um bom par de anos, Natalie Dessay estreou esta mesma produção, no Met. A noite de gala (já da era Gelb) foi por si encabeçada, com um brilho expectável. Desde então, as mais destacadas lirico-spinto da actualidade têm-na revisitado, destacando-se – sobretudo – a belíssima Netrebko e a graciosa Damrau.

Lucia di Lammermoor conta-nos a história da desventurada Lucia, personagem de uma fragilidade inusitada, que faz uma descompensação psicótica, diante de uma adversidade, evoluindo numa linha que se adivinha esquizofrénica. A trama, em certo sentido, recria a fórmula Shakespeareana (vide Romeu e Julieta) dos amores interditos, por se encontrarem inscritos num clima de rivalidade familiar. De permeio, deparamos com uma figura eminentemente perversa, interesseira e calculista – Enrico, o irmão de Lucia -, cuja malícia dita o desenlace trágico da obra.

A encenação de Mary Zimmerman conserva inúmeros pontos de interesse, particularmente pela circunstância de ilustrar o espírito lúgubre e dramático, característicos da obra de Walter Scott e (da lírica visão) de Donizetti. A fina mão da encenadora – por demais versátil (vide Armida) – propõe-nos um ambiente plenamente romântico, impregnado de tragédia e perda. Os figurinos (Mara Blumenfeld) são elegantíssimos, os cenários majestosos (Daniel Ostling), sem resvalarem para o realismo megalómano e pindérico de Zeffirelli! – e a iluminação (T. J. Gerckens) de uma notável eficácia, particularmente na construção dos ambientes intimistas, bem como na precisão com que ilustra o trágico.

Dos solistas destacam-se, particularmente, as prestações superlativas de Dessay e Calleja, respectivamente Lucia e Edgardo. Dessay terá perdido parte da sua pretérita agilidade. Os sobre-agudos enfermam de falta de espontaneidade e segurança, sem margem para dúvida. Contudo, a faceta soubrette da solista progrediu, no sentido lirico-spinto, aliando agilidade vocal a maior robustez. A Lucia de Dessay é um produto dramático, impregnado de pathos – atente-se no riso dissociado (e demais sinais de discordância, tão eficazmente ilustrativos da fractura psicótica) e na autenticidade da aparatosa queda (escadaria abaixo). Calleja, por seu lado, reabilita o estilo memorável de Di Stefano – o meu Edgardo discográfico: à segurança e ousadia técnica alia um sentido lírico arrebatador, patente na paixão com que ilustra a sua falta de fortuna. Absolutamente pungente!

Os demais solistas revelaram brilho e linhagem, sobretudo Tézier (Enriço) e Youn (Raimondo), maugrado a falta de envergadura teatral do barítono francês que, no plano vocal, foi irrepreensível!

Por fim, a fabulosa orquestra do Met fez jus à sua fama, proporcionando uma performance rica, pela coesão e sentido dramático revelados
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* * * * *
(4,5/5)

18 comentários:

FanaticoUm disse...

Desde o dia da promessa que estava à espera deste seu texto. É sempre um prazer e uma lição ler as suas crónicas. Muito obrigado

J. Ildefonso. disse...

João

Não há nem sopranos spintos nem tenores spintos na Lucia. É um papel de coloratura. Lá por haverem sopranos spintos que têm versatilidade para cantar o papel não sginfica que ele tenha sido escrito para esse tipo de voz. Aliás nem sequer havia essa tipologia vocal na época.
Quem estreou a Lucia foi a Persiani que provavelmente, a avaliar pelas descrições e outros papeis cantados, tinha uma voz bastante semelhante à Dessay.
vais ver o rossini?

Il Dissoluto Punito disse...

João,

A questão é polémica, eu sei. Se reparares, nenhuma das grandes Lucias se increve no registo do soprano coloratura! Vide Callas, Sutherland, Sills, Gruberova, Swenson, Anderson. Todas tinham agilidade e poder!

A Dessay, no início da carreira, teria dado uma Lucia pobre, dado que apenas possuía a agilidade da coloratura.

Consta que a Sumi Jo foi uma sofrível Lucia, contudo, na coloratura era exímia!

Quanto à interprete que criou o papel... Enfim.

J. Ildefonso. disse...

Seja como for é utilizar terminologia anacrónica. Hoje em dia fazemos este tipo de distinções porque fazemos música de várias épocas diferentes tentando respeitar as práticas contemporâneas e por isso tem de haver especialização por parte dos cantores. Seja como for na época todos os cantores eram treinados nas técnicas de coloratura e agilidade porque era esse o gosto vigente.
Dificilmente definiria a Sills, Swenson, Anderson ou até a Gruberova como sendo outra outra coisa que não um soprano ligeiro/coloratura, designação que também não existia na altura!, pelo menos durante a parte mais inportante da carreira. Obviamente depois há o potencial e arte individual de cada um que pode fazer ultrapassar essas barreiras.

Il Dissoluto Punito disse...

As 4 últimas que referes começaram, de facto, como ligeiros, mas evoluíram para lirico-spinto!

J. Ildefonso. disse...

A Gruberova canta a Norma mas não canta a Norma com voz de spinto. Canta-a com extraordinaria perícia com a voz que sempre teve de ligeiro ou quanto muito lirico/ligeiro.
À Sills só lhe conheço papeis belcantistas.
A Anderson no final de carreira ensaiou algum Strauss e Verdi, cantará inclusive em breve a Salomé com orquestra reduzida, mas a voz continua a ter muito de ligeiro por muito potencial que a experiência da sua dona lhe tenha emprestado.
A Swenson cantou também a Bhoéme e a Amelia Bocanegra que realmente se inscrevem num registro mais lirico.
Todas elas cantaram a Traviata com maior ou menor exíto que é um papel ambiguo que pode ser cantado com sucesso por vozes muito diferentes mas o reportório representativo da voz spinto, Verdi tardio, Nuova Scuola Italiana inclusive algum Wagner não me parece que tenham cantado ou pelo menos que tenham feito de forma sistematica e com sucesso.
Obviamente a Lucia é um papel complexo com uma grande exigência dramatica e vocal, o personagem está muito bem construido e também porque é bastante longo mas de ponto de vista meramente vocal as exigências que coloca são de agilidade, virtuosismo, beleza timbrica, capacidade de ornamentação, coloratura, agudos e sobre-agudos. Tudo caracteristicas maioritariamente associadas ou exclusivamente propiedade de sopranos ligeiros ou de coloratura se assim os quisermos chamar ou então dum bom lírico com uma boa extensão aguda.
É o que eu penso e tenho lido mas posso estar enganado ou ter entendido mal o que li, aliás porque tal como o João diz é um assunto controverso.

PS- Alguém vai ver o Rossini?

Raul disse...

Óperas mais ou menos contemporâneas, a Lucia di Lammermoor e a Norma nunca partilharam intérpretes até que uns 120 anos depois, mais ou menos, uma cantora de voz excepcional resolveu fazê-lo: Maria Callas. É de notar estas palavras, ainda actuais do especialista callaciano John Ardoin (The Callas Legacy, 1995, 4ª edição) a propósito do surgimento no mercado em 1953 do seu primeiro registo da ópera:
"No one before her had "heard" Lucia the way she did. Nor they been able to articulate Donizetti's music with such deep and specific feeling. Lucia become a recognizable human being. The Fountain Scene was an expression of both tragic forebothing and ecstatic first love. The Mad Scene became the cumulative threnody for that love betrayed when the forebodings had become reality. (...) She become a human being. As dhe almost with everything she sang, Callas changed our very perception of the role and its possibilities. In so doing, she not only gave us Donizett's heroine but she also changed the face of opera. After Callas, Lucia, Lucia de Lammemoor and the entire bel-canto repertory would never be the same. We are still dealing with and reeling from her revolution."
Mais adiante e muito notavelmente acrescenta: "Mechanical singers, lazy singers, coutions singers must have hated her."
Apesar de todas estas verdades e hoje não se aceitar um soprano ligeiro "puro e duro" como a Roberta Peters, a ópera tradicionalmente foi de sopranos ligeiros até que a genial cantora operou o milagre e que agora exige mais "corpo" para a voz da intérprete. No entanto, se não tiver a agilidade e a tessitura da Cena da Loucura, não será a Lucia di Lammemoor.

portasabertascadeirasaosoco disse...

Ouço falar tanto da tal cena da loucura que ando morto por ver a minha primeira Lucia,se alguem souber de uma acessível e boa,que me diga por favor.Obrigado

Anónimo disse...

portas,
no kickass, tens uma Gruberova Kraus Bruson Lloyd, outra Sills - Bergonzi - Cappuccilli - Scotto - di Stefano - Bastianini. também Sills - Bergonzi - Cappuccilli.
Tudo bom material auditivo!

Il Dissoluto Punito disse...

Portas,

Tens 3 Callas (EMI e outras etiquetas), duas Sutherland (DECCA), Uma Sills, uma Scotto, Uma Sutherland (dvd DG), uma Netrbko (dvd DG)... Ah! E uma com a Devia AOS 60 E TAL ANOS F A B U L O S A!!!

Depois conta-me como foi o deleite :)

Gus On Earth disse...

E eu que só ontem é que descobri que um dos cinemas locais aqui em Bristol transmite as temporadas do MET! Aparentemente só o começaram a fazer em Setembro, mas nunca o publicitaram devidamente.
Soube-o ao ir ontem à ópera: um Trovador a que daria 4/5, onde brilharam Joanne Thomas (Azucena) e bem mais ainda Gwyn Hughes Jones, que desempenhou, sobretudo vocalmente, um Manrico de elevadíssima qualidade.
Perdi a Lucia, o que me causa muita pena. Mas não perderei Le Comte Ory, já à porta!

Hugo Santos disse...

Na "mouche", caríssimo Raul.

A resposta mais satisfatória às questões aqui debatidas reside, na minha perspectiva, na própria evolução interpretativa do papel. Por um lado, verifica-se a existência de um género de abordagem característico de instrumentos ligeiro-coloratura materializado em figuras como Mercedes Capsir, Lily Pons, Lina Pagliughi, Patrice Munsel, Dolores Wilson, Roberta Peters ou Gianna d'Angelo.

A via desbravada por Callas foi, posteriormente, percorrida por intérpretes como Virginia Zeani, Leyla Gencer, Cristina Deutekom ou, numa incursão absolutamente "fuori-ruolo", pese embora nada desprezível, Marisa Galvany.

Já Renata Scotto, Anna Moffo, Beverly Sills ou, num plano secundário, Maria Luisa Cioni, Anna Maccianti, Ruth Welting e Patricia Wise (porventura, até uma Maddalena Bonifaccio) procuram, com variável sucesso, aliar a dimensão pirotécnica do papel a uma intenção dramática mais vincada face às suas predecessoras, aquelas minimamente equiparáveis em termos de tipologia vocal.

portasabertascadeirasaosoco disse...

Bom dia.Antes de mais obrigado Dissoluto pelas dicas magnificas que me deste.O bolso anda tísico,mas logo que possa vou comprar uma,a que for mais simpática :) e logo direi.
Tenho mirado a da Sutherland,não sei porque mas gosto da mulher,mas o preço é exorbitante.Já que ela morreu bem que podiam fazer uma rebaixa e divulgar a sua obra.
Outra coisa,gostava de saber algo que me faz espécie!
Sendo a personagem Micaela da opera Carmen tão conhecida,como é possível que,numa das mais famosas gravações,a da DG com a Berganza, Domingo,Milnes e Cotrubas,ela não esteja representada na capa principal do cd,quando lá está tanta gente?mais propriamente são 11!estará disfarçada?.....é injusto,porque eu gosto muito do papel dela,tanto mais que a vi á bem pouco e acho que merecia mais destaque.
Cumprimentos

Hugo Santos disse...

Caro portas,

eu poria a questão da seguinte forma: não creio que uma Micaela excepcional seja suficiente para transformar uma gravação da Carmen numa referência discográfica, da mesma forma que uma Micaela abominável não estigmatiza, inapelavelmente, uma dada versão.

Raul disse...

Caros Portas e Hugo Santos,
Eu poria a questão de outra forma, mais de conteúdo. Micaela é a "outsider" da tragédia Carmen, do mundo "Carmen", não fazendo parte dos contrabandistas, a taberna do Lilas Pastia, de SEvilha. Não poderá ter sido a intenção de quem concebeu a capa?

Hugo Santos disse...

Caro Raul,

concordo inteiramente consigo. O perfil psicológico da personagem não só se apresenta, à partida, assaz alheio ao das demais e à própria ambiência dominante da ópera como também jamais se deixa "contaminar" tal como sucede com D. José. Julgo que o contexto em que a ária "Je dis que rien ne m'epouvante" ocorre é ilustrativo do que acabo de mencionar.

J. ildefonso. disse...

Muito oportuno Raul, nunca tinha pensado nessa possibilidade mas faz todo o sentido.

portasabertascadeirasaosoco disse...

Sim,percebo e embora não conheça a historia em profundidade,acredito que isso faça sentido.Depois dessa exlicação torna-se mais claro
Quem é o ANONIMO ? kickass não quer dizer pontapé no cú?????? isto é gozo comigo?