domingo, 24 de outubro de 2010

Um Eléctrico chamado Desejo - Teatro Nacional D. Maria II

Em Um Eléctrico chamado Desejo, de Tennessee Williams, há um confronto essencial, que se esboça desde a entrada em cena de Blanche Dubois: fantasia vs realidade.

Blanche evolui, em termos de complexidade e dramatismo, até que a perda de contacto com o real se torna esmagadora. De início, somos levados pela sua irresistível sedução e histrionismo. Representa compulsivamente, qual histérica, escravizando a realidade em favor da fantasia. Contudo, é pela via da mitomania que o real se camufla. Blanche sabe-o. O que pretende é revelar uma verdade subjectiva que, embora contraste com a objectividade, radica no seu desejo.

Contudo, progressivamente, o corte com a realidade externa instala-se. Desde o confronto com Mitch que o colapso psicótico ameaça. A senhora Dubois termina dissociada, delirante, alheada da realidade externa.

Já Kowalski representa a supremacia do real, avesso a qualquer verdade fantasiosa. Trata-se de uma criatura rude e pragmática, narcísica, impulsiva e violenta – um registo mais borderline. A sua missão é despir Blanche dos seus adornos fantasiosos, revelando a verdade crua. Recorrendo a factos, reconstrói o passado da senhora Dubois, com o propósito de a destruir.

Blanche e Kowalski são os dois monstros da trama de T. Williams, sumos representantes de dois mundos antagónicos.


Na produção ora em cena no D. Maria II, Diogo Infante revela dominar o conflito que opõe realidade e ficção. Há subtileza e consistência na deterioração da ficção narrativa de Blanche (Alexandra Lencastre), que resvala para o delírio e neo-realidade psíquica, e uma enorme solidez na crueza real, adaptativa, de Kowalski (Albano Jerónimo). Porém, apesar do mérito superlativo de Jerónimo, a sua personagem sofre menos transformações que a da partenaire sendo, por isso, menos desafiante e complexa. Kowalski mantém-se no mesmo registo, do princípio ao fim: um servo da verdade exterior.

Alexandra Lencastre, cujo desafio é colossal, vinga, nunca se transcendendo. Não há génio na sua Blanche, mas há talento, envergadura dramática e coerência. Por diversas ocasiões, bordeja o paroxismo, jamais o expressando em pleno...

Lúcia Moniz e Pedro Laginha – respectivamente Stella e Mitch – não destoam da inequívoca qualidade desta produção.


Longe do génio apregoado, esta produção de Um Eléctrico chamado Desejo merece uma referência particular, pela coerência e subtileza da encenação (a iluminação é, neste capítulo, soberana!) e pela grande qualidade interpretativa dos actores.

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(4/5)

1 comentário:

Raul disse...

Para mim Alexandra Lencastre é a maior actriz saída nos últimos vinte anos. É uma "steal scene". Só ela é que se vê. Multifacetada e muito bonita.