Um belo trio, razoavelmente bem tocado, numa encenação de pacotilha!
Zeffirelli, numa proposta datadíssima, pirosa – um guarda-roupa de fugir, de um realismo à feira do relógio, em cenários bafientos –, como sublinha Bondy, pretensamente, evoca o génio de Visconti. Porém, enquanto L. Visconti constitui a obra – prima, Zeffirelli recorda a prima do mestre – de – obras.
Vickers – o melhor Otello do mundo -, clama por Shakespeare, recriando-o. Revitaliza-o, verdianamente. A síntese é um assombro: teatro, poesia, declamação, interpretação, servidas por um instrumento vocal amplo e gloriosa, em pujança, riqueza expressiva e nobreza. O acto III deveria figurar nos manuais de interpretação operática: Jon Vickers canta com as vísceras, impregnando o seu protagonista de delírio, ciúme, ódio e desespero. No teatro, nem Del Monaco lhe chega aos calcanhares.
Ladeia-o a subtil Scotto, de voz colorida e técnica impecável, compondo uma Desdemona frágil e delicada, dilacerada pela corrosão psíquica do amante. Por fim, Macneil interpreta um Iago magnânimo na voz, mas titubeante na recriação teatral: a mímica é trôpega e a maquilhagem ridícula não ajudam muito...
Levine dirige uma orquestra pouco oleada, com tempi muito irregulares.
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(4/5)
15 comentários:
Estou agora a vir de uma dessas encenações pirosamente realistas do Zefirelli, mas até acho que não é uma coisa má de todo...
Esta versão eu ainda não conhecia... tenho a versão com Freni e Vicker com Karajan na batuta... Dessa, não gostei. Preferi, mesmo com o conteúdo vocal mais precário, o " Othello " na versão em filme pela Cannon de Zefirelli com Domingo, Ricciarelli e se não me falha a memória, Justino Díaz. Mas cá entre nós, um Iago como Gobbi não se faz mais... E se tivéssemos uma Callas em seus trinta anos de idade a interpretar ( ou encarnar ) a Desd~emona... seria um dream team, a bem da verdade... Mas somente no mundo das idéias... Quem sabe, copiando a idéia do filme " Callas Forever ", possam os engenheiros de gravação pegar um Solti regendo e inserir o Gobbi no Iago, Vickers no Othello e a Sulliotis ou Scotto na Desdemona ? Não seria uma idéia a instigar os amantes ad extremis do bel canto ?
Anónimo, e que tal as Desdemonas de Risanek ou Studer???
Em última análise, volto sempre ao Otello de Domingo, Freni e Cappuccilli, dirigidos pelo saudoso Carlos Kleiber.
Em vídeo, as três versões "live" de Domingo (Solti, no Covent Garden; Levine, Metropolitan; Muti, Scalla) são um assombro, quer vocal, quer teatral, o que me faz duvidar de que Vickers seja, realmente, «o melhor Otello do mundo».
Luís,
Domingo é assombroso, mas... Os dois últimos em dvd revelam precaridades vocais, convirá!
Tem razão, mas a sua actuação é electrizante!
Tenho curiosidade em ouvir o Otello de Salzburgo, com Vickers, Freni e Glossop, dirigidos por Karajan (diferente da versão de que existe filme, gravada com a Filarmónica de Berlim). Conhece-a?
Luís,
Não conheço... De Salzburgo, só conheço a de Furtwangler, com Vinay.
O meu Otello favorito também é o Domingo/Freni/Cappucilli dirigidos pelo Kleiber. Não é isento de falhas, o Capupucilli faz umas coisas muito feias o qué é estupido porque canta magnificamente e não havia necessidade.... Nunca encontrei o Domingo tão subtil e apaixonado, a Freni é a melhor Desdemona da época, fresca, juvenil e sincera. O Kleiber tem uma direcção muito alerta, vital e interessante que parece que rspira com os cantores. O som é bom para gravaçao pirata dos anos 70. Em suma, aconselho vivamente.
Desculpem lá, estou a ouvir muitos Domingos, mas acham realmente que o Plácido é um Otelo de refência?
Está bem que este papel remete para um tenor com capacidade de um desempenho artístico mais intelectual e que se pretende mais baritonal. Mas eu simplesmente nunca vi um barítono no Plácido. Pelo menos desde os anos 70. Tenho uma gravação dele como Des Grieux (Puccini) a par da Caballé (do início dos anos 70) e aí vejo um tom baritonal. Tirando isso, nos anos 80, só lhe apanho um tom obviamente tenoral e aquele spinto inicial andou. Não vejo aí propriamente um Otelo. O Plácido é o meu tenor de sempre (pondo o Caruso de lado), mas acho que Otelo requer muita força e pujança na voz. Ou seja, bye bye Plácido. Quando ele entra e vem "Esoltate! L'orgoglio mossolmano sepolto è in mar etc". Reparem na força do discurso em si "Festejai", "orgulho", "sepultado", "mar", "céu", "glória": só palavras fortes. O Vickers também passou um bocado ao lado disto ;-)
Agora chegou o momento de me crucificarem: Pavarotti. Provavelmente, com um temor imenso da asneira, nunca vos ocorreu comprar aquele Otelo do Pav com a Kiri, o L Nucci e o Solti à cabeça! A mim, como iniciado, ocorreu-me mais como uma acção baldas há 2 anos. E quem diria que é formidável? O Solti gosta é disto: repertório intelectual e obscuro. Uma fenomenal prestação do maestro. Nucci, como barítono essencialmente verdiano que é, arrebatador Jago. Kiri, com aquela voz doce que eu tanto adoro (e como fez com o Plácido) toca-nos o coração com a castidade e o amor de Desdemona. E o Pavarotti?? Experimentem ouvir. Nem ninguém ousou pôr no YT o 'Dio mi potevi scalgliar'. Mas é fenomenal!! Ele (vá lá, ponham de parte os preconceitos) é um tenor de voz cheia e timbre bonito - excelente em Verdi, que também é tipo pateta-alegre, por vezes. E era um bom actor quando queria, dentro dos seus limites físicos; não me venham com tretas. Conseguiu dar toda aquela intelectualidade ao Otello, fenomenalmente! Como referi, Dio mi potevi scalgliar tem uma interpretação profundamente introspectiva (um pouco liberal) e arrebatadora. Também há coesão dentro do inteiro da ópera em si. No entanto, devo dizer que ele não tem voz obscura. Mas o que é muito interessante é que ele consegue substituir essa obscuridade necessária por um vigor que mais nenhum teve. Ninguém disse tão vigorosamente 'Niun mi tema'. Nunca! (Talvez o Anjaparidze tenha sido igualmente vigoroso.)
Deixo uma espécie de ideia a reflectir em conjunto com o Pav: Leo Slezak.
Portanto, para mim, a melhor gravação do Otello é a da Te Kanawa, Pavarotti, Nucci, SOLTI.
Se me é permitido, vou procurar abordar um pouco de tudo quanto se escreveu até ao momento.
No que concerne a gravações do Otello, concordo com o nosso caríssimo Dissoluto: Vickers/Rysanek/Gobbi/Serafin (RCA, 1960) constitui-se como a minha versão de referência, não obstante a absoluta excelência de Del Monaco/Tebaldi/Protti/Karajan (DECCA, 1961) para invocar, porventura, o mais comummente recomendado dos registos comerciais da ópera. Mais acrescento que a leitura de Serafin afigura-se como modelar, colocando-se ao serviço da partitura verdiana como só um grande maestro daquela velha escola italiana repleta de "kappelmeister" o saberia fazer. Karajan, tributário de uma visão diametralmente oposta da figura do director de orquestra, tende, de modo consciente ou inadvertido, a chamar a atenção para si, com o que isso acarreta de benéfico e/ou nefasto. A interpretação de Karajan é magnífica, de um carácter marmóreo na robustez e imponência da concepção da obra, em oposição à abordagem mais orgânica do venerável italiano. Todavia, de quando em vez tende a sobressair, desviando os holofotes dos protagonistas. Não gostaria que os que me lêem interpretassem as minhas palavras como uma crítica. É tão somente um sentimento que me perpassa cada vez que escuto este pilar da discografia.
Relativamente aos registos vídeo mencionados com Placido Domingo, possuo o DVD do MET com Renee Fleming e James Morris (1996) e uma gravação em VHS das récitas do Scala em 2001 que marcaram a despedida entre o tenor espanhol e o Mouro de Veneza. Apesar de marginalmente mais fresco na primeira gravação, tenho uma preferência pela versão mais tardia não só pela direcção mais interessante e personalizada de Muti, como também por considerar o Iago de Nucci mais idiomático e dramaticamente eficaz do que o de Morris. O próprio Domingo denota mais empenho na composição da personagem no registo do Scala. As intérpretes da Desdémona equivalem-se, grosso modo, conquanto Frittoli não possua um instrumento ao nível do de Fleming, nem esta última as nuances dramáticas da primeira.
(Cont.)
O percurso de Placido Domingo é, de certa forma, análogo ao de Carlo Bergonzi. Não só iniciaram a carreira interpretando papéis baritonais (embora Bergonzi o tenha feito a um nível mais elevado), como, ao ascenderem ao registo tenoril, revelaram-se possuidores de instrumentos lirico-spinto, edificando um reportório algo semelhante, não obstante o de Domingo se tenha vindo a constituir assaz vasto e diversificado, com o avançar dos anos. Quer num caso quer no outro, a assunção de um papel como o de Otello perfilar-se-ia sempre como um risco considerável. Um desafio que Domingo superou em absoluto graças a uma admirável técnica, recursos vocais e dramáticos de monta e ao perfeito domínio do jogo cénico. Em termos puramente vocais, o timbre de Plácido Domingo sempre reteve algo de baritonal nos graves e médios, contrastando sobremaneira com o brilho dos agudos, a bom efeito.
No caso de Luciano Pavarotti, estamos perante um tenor, essencialmente, lírico com um volume vocal generoso, pese embora tenha começado a abordar, ainda no auge das suas faculdades, papéis talhados para instrumentos lirico-spinto ou mesmo spinto. Neste lote, incluem-se o Calaf, o Radamés, o Manrico, o Ernani ou o Andrea Chenier. No respeitante ao Otello, a interpretação de Pavarotti representa mais uma curiosidade do que uma leitura de pleno direito, comparável às demais aqui aludidas. Haverá a claridade do timbre, o cuidado com a linha de canto e o lirismo capaz de fazer relativa justiça às passagens mais elegíacas e contemplativas, contudo falta-lhe o ímpeto e a pujança nos ataques, a coluna de som portentosa nos momentos explosivos, em suma, uma voz globalmente compatível com as exigências da partitura.
A curiosa referência ao tenor russo Zurab Andzaparidze levou-me vasculhar os arquivos em busca de um recital editado pela Melodya com extractos do Otello, da Aida e da Carmen. Ouvi com atenção o “Esultate!”, o final do segundo acto a partir de “Desdemona rea!” bem como o “Niun mi tema”, cantados na língua original. Andzaparidze patenteia características de um tenor dramático, com uma excelente projecção e volume vocais aliado a um timbre “arredondado”com certos laivos baritonais, segurança nas regiões grave e aguda e um centro bem definido. Um intérprete a considerar.
Acredito que dentro de certos limites, que têm a ver com a extensão vocal, volume, tecnica e propriedade estilística, os papeis podem ser abordados por vozes bastante diferentes. Será dentro destes limites o gosto pessoal, contexto histórico, tradição a determinar as preferências pessoais, da crítica e do público.
Pessoalmente acho o Domingo um óptimo Otello. Tal como o Vickers. O Vinay. O Carlo Cossuta. Também acho o Pavarotti um bom Otello porque canta de forma honesta com a voz que lhe era natural sem esforçar ou mascarar o seu timbre essencialmente claro e lírico. Mas não é o meu favorito. Acho o Domingo superior em potencia, virilidade e também em alguns casos, dependente da gravação, em "nuance" e complexidade da exploração do papel.
Acho que existe alguma contradição no comentário de Plácido Zacarias, ou então fui eu que não entendi bem, porque falar na necessidade duma voz com características baritonais quando louva a interpretação do Pavarotti que eu não entendo como sendo uma voz com as referidas características.
Lembro que o Tamagno, criador do papel, também cantava, não sabemos como!, os Puritanos e o Guilherme Tell!
Afinal não é bem assim. Há gravação do Guilherme Tell do Tamagno. Encontrei no youtube.
Caro Plácido
Com o seu novo post percebi perfeitamente o que quer dizer. A arte e o engenho ultrapassam as barreiras da natureza da voz do cantor. Continuo a preferir o Domingo mas agora a sua postura sobre a matéria é muito clara.
Muitas vezes vozes atípicas ao que estamos habituados em determinado reportório dão-nos leituras muito interessantes e que iluminam de forma inusitada o que pensávamos sobre o assunto. Aconteceu-me o mesmo com o D. Carlos e Aida do Carreras/Freni.
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