Pode uma interpretação operática conter uma das mais belas incarnações da discografia e, em simultâneo, das mais aberrantes prestações?
Este Rigoletto é a prova disso mesmo!
A resposta a este post é simples: Sherrill Milnes.
Milnes foi um dos mais extraordinários barítonos de sempre. A opinião é minha, não gerando consenso. Em terreno verdiano, teve como rival Cappuccilli – seu contemporâneo -, nenhum outro cantor da sua geração lhe chegando aos calcanhares.
O Rigoletto que interpreta nesta leitura é um colosso de drama e elegância vocal. O timbre é puro malte! A dicção aberta e firme confere à personagem uma linhagem pouco habitual. Por regra, Rigoletto é uma figura sofrida, agrilhoada a uma inexorável maldição. Pois Milnes vai muito além disso, conferindo à sua leitura um toque aristocrata, nos antípodas da proposta de Gobbi – outro dos mais assombrosos protagonistas desta mesma peça lírica. Não será para todos os gostos… Mas, por que será Rigoletto uma criatura bossal e grosseira?
E, na sua composição, há dor, uma imensa ferida narcísica, e dilaceração a rodos, sem cair na trivialidade do exacerbamento. Modelar, enfim!
Depois, há os demais intérpretes…
Pavarotti – no auge do seu reinado – transpira uma sanidade vocal sem paralelo, com um registo agudo de invulgar firmeza, cristalino e brilhante como poucos. Mas, como alguém disse, teatralmente, é uma imensa massa, colossal nas suas dimensões, que se limita a cantar muito bem. A sua interpretação é frustrante, sem ponta de subtileza, nem requinte algum.
Para o final, reservo o pior: a Gilda mais desabitada que conheço – pior ainda que a de Peters! A articulação de Sutherland sempre foi trôpega – as consoantes inaudíveis! A sua interpretação fica aquém do banal, enfermando de uma superficialidade aterradora.
Apesar da sua "pirotecnia" vocal – das mais sólidas e brilhantes coloraturas que se conhecem -, em termos interpretativos, Sutherland é de um amadorismo que roça a ignorância.
Bonynge salva a honra do convento, servindo este Rigoletto com inegável sentido teatral, equilibrado e disciplinado.
Por Milnes, indubitavelmentre! E muito pouco mais.
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(3,5/5)
25 comentários:
Concordo consigo no que respeita a Milnes. É um excelente Rigoletto...
Gilda não será uma das personagens operáticas que Sutherland desempenhado da melhor forma. Dizer isto - "em termos interpretativos, Sutherland é de um amadorismo que roça a ignorância." - é um pouco estranho para qualquer amante de ópera, mesmo nos dias que correm em que muitas cantoras são bonitas, excelente actrizes, mas cantam pouco e mal...
Cumprimentos
Alberto,
Refiro-m, apenas, à Gilda da Sutherland! As suas demais interpretações, enfermando (algumas) de certa superficialidade, distinguem-se da desolação que esta Gilda constitui.
Caro Dissoluto,
Acho que usa termos muito duros para tão excepcional cantora, a quem certo reportório de ópera deve tanto. Mesmo que não gostemos de uma cantora deste nível merece outras palavras. Não se esqueça que este blogue tem para muitos leitores, e que pertencem ao grupo daqueles que não se exprimem, uma função pedagógica, já que é o melhor no seu género. A Sutherland não é ignorante nem uma amadora para que com ela se use esta linguagem. O meu caro dissoluto segue a linha francesa, ao contrário da inglesa, que eu muito aprecio e que é mais contida. Desculpe a grande, porque é muito grande, discordância.
What a shame! "repertório" e não "reportório". Devo andar a fazer muitos "report".
Tenho curiosidade em ouvir a primeira Gilda da Sutherland com o grande Cornell Mcneil e o Cioni que segundo dizem é muito interessante. Seja como for depois da Callas e da Sutherland o personagem Gilda é definitivamente resgatado das area de influência do soprano ligeiro o que me parece correcto porque a primeira Gilda tanto cantava a Gilda como a Leonora do Trovador.
João,
E por que não a Leonora ter sido cantada por um soprano ligeiro?
Eu gosto mais de ouvir a Gilda por um soprano ligeiro, mas é um facto que na gravação do último acto do Rigoletto com o Warren pelo Toscanini este tenha escolhido a Zinka Milanov, embora ela achasse que não tinha perfil vocal e o velho maestro tivesse dito que tinha.
É uma boa questão Raul. Hoje em dia à Gilda e à Leonora são associadas dimensões vocais, poéticas e dramaticas distintas mas aparentemente em meados do sec. XIX não era bem assim. Desconfio que alguma coisa nos escapa. Ou as nossos Leonoras são excessivamente violentas, barulhentas e apaixonadas ou as nossas Gildas são excessivamente linfáticas e infantis.
Na minha concepção, Leonora em Il Trovatore deve ser afrontada por um soprano lírico-spinto com agilidade, fraseado elegante e um excelente legato. A noção de linha vocal neste papel, no qual ecoam as características vocais de algumas heroínas donizettianas e bellinianas, é igualmente de extrema importância. Em termos timbricos, tenho tendência para favorecer intérpretes com uma voz não muito escura como a Antonietta Stella ou a Gabriela Tucci. Claro que, ignorar Leontyne Price neste papel, não é admissível.
É curioso o Hugo referir a Tucci que afinal gravou a Leonora e também foi uma excelente Gilda. Um timbre claro, bom legato, uma excelente musicalidade, boa agilidade fizeram com que pudesse cantar ambos os papéis com exito assinalável se bem que talvez não seja a interprete de eleição em nenhum deles.
Lembro-me também da Fritolli no Trovador do Scalla onde as caracteristicas Donizettianas e Bellinianas duma atmosfera nocturna e misteriosa da partitura são especialmente salientadas pelo Mutti com resultados muito interessantes.
Raul não sei se percebi bem a pergunta.
Acho que a Leonora do Trovador , tal como a Elvira do Ernani e até a Luisa Miller está além das capacidades dum soprano ligeiro puro como por exemplo a Dessay, para dar um exemplo contemporaneo. Aliás como todos os papéis titulares das óperas de Verdi. Mesmo a Traviata acho que ganha com uma voz mais lirica. Penso na Gruberova que cantou com sucesso a Traviata, para continuar com exemplos contemporaneos, mas que creio que também não possa ser considerada um ligeiro puro, pelo menos nessa fase da carreira.
O João Ildefonso referiu a Leonora da Barbara Frittoli que eu possuo quer em áudio, quer em vídeo, e cuja interpretação do "Tacea la notte placida" é uma das mais atmosféricas que conheço. Relativamente à Tucci,
é mais uma prova de como os tipos vocais não são compartimentos estanques. Para um lírico-spinto, a sua Gilda é vocalmente bastante válida, embora careça de uma maior facilidade em negociar o registo agudo. A voz é ágil mas não tanto como a de um lírico-ligeiro, resultando num certo forçar para chegar ao ré sobreagudo no final do "Si, vendetta" tal como pode ser aferido no Rigoletto de Tóquio com Aldo Protti e Gianni Poggi (1961). Conto ainda com um registo da sua Gilda, efectuado no MET em 1971, no qual o soprano italiano conserva ainda muitos dos predicados, não se atrevendo, todavia, a afrontar o agudo no fim do dueto anteriormente mencionado.
Hugo
Eu tenho muita simpatia pela Tucci e acho que é um pouco desprezada, como a Stella aliás também é, conheci-a através dum gravação de estúdio do Trovador com o Corelli em excelente forma e onde a Tucci constroi um Leonora bastante timida mas que por isso mesmo achei muito atraente. Por curiosidade refiro que a mesma me contou que a gravação foi feita em dois takes! É pois praticamente uma gravação ao vivo feita em condições de estudio.
Sou obrigado a utilizar certa terminologia que previamente usei. A Tucci canta bem, mas não entusiasma. A voz é um produto bem trabalhado mas sem identidade.
A Stella é bem melhor, pois tem um timbre ligeiramente escuro e um legato perfeito. É uma excelente voz verdiana que conheceu uma fama que a Tucci nunca teve. No palco, onde a vi na Tosca, Fedora e Ernani era uma grande presença: elegantíssima, bela e movendo-se de modo a cativar o público. Não estou a ver estas características na simpática Tucci.
Antonietta Stella num mundo sem Callas e Tebaldi seria a grande cantora italiana do seu tempo.
Raul
Para sabermos quem deve cantar a Gilda e a Leonora temos que procurar quem a cantou a primeira vez, qual o repertório dessas cantoras e o que Verdi disse sobre o assunto. Sem este método não se atinge a "verdade científica".
A Gilda, desde que há registos sonoros foi domínio dos sopranos ligeiros, dos superfamosos aos mais obscuros. A Leonora, uma herança belcantista em muitas passagens (final do Tacea la notte e dueto com o Conde) exige mais volume e maior tessitura. Para cantar bem a Leonora tem que ser uma grande cantora; o mesmo já não acontece com a Gilda.
Raul
Concordo consigo, caro Raul.
Caro João, não fazia ideia que tinha falado com Gabriela Tucci. De facto, sente-se uma certa "imperfeição" no registo do Trovador que, como refere, parece amiúde aproximá-lo de uma gravação ao vivo. De facto, sinto uma ligeira tensão vocal na prestação da Tucci que não constato em alguns registos ao vivo da sua Leonora, efectuados no mesmo período.
Rosina Penco, a primeira Leonora, era um soprano lírico-coloratura com um repertório que abrangia Rossini, Bellini e Donizetti. Relativamente às práticas correntes, apresenta um tipo vocal mais distante daqueles que nos habituamos a ouvir na personagem. Segundo esta linha de raciocínio, a Leonora de Joan Sutherland será aquela mais historicamente informada, se me é permitido empregar esta expressão.
Hugo,
Só uma correcção: o sobreagudo normalmente interpolado no final do Si, vendetta, não é um ré, mas um Mi bemol. A partitura está em Lá b Maior pelo que não poderia ser um ré.
Cumprimentos
Obrigado pela correcção, Ricardo.
Sim na verdade conheci a Tucci que é uma senhora muito simpática. Ela diz que o seu papel favorito foi a Alica Ford, que eu não conheço, mas consigo imaginá-la perfeitamente a canta-lo. Concordo perfeitamente com Raul no que diz respeito à comparação entre a Tucci e a Stella. Seja como for qualquer uma delas seria hoje em dia uma adição preciosa aos circuitos internacionais de cantores o que diz qualquer coisa sobre os cantores Verdianos da actualidade.
Existe uma outra cantora italiana da geração Stella que podemos pôr neste grupo de semi-esquecidas e que foi também muito boa: Rossana Carteri. Outra um pouco mais antiga, mas excelente: Catarina Mancini. De ambas existem muitas gravações. Clara Petrella que foi a minha Butterfly nos meus LPs é outro nome a lembrar.
Raul
Caro João Ildefonso,
a Tucci é uma excelente Alice tal como prova o registo que possuo ao vivo de um Falstaff dirigido por Bernstein no MET em 1964, na famosa produção de Zeffirelli. Ladeiam-na Anselmo Colzani, Mario Sereni, Regina Resnik e Luigi Alva, entre outros. O conjunto opera maravilhas.
Caro Raul,
existe todo um conjunto de sopranos italianos associados ao período temporal que refere (final anos 40/anos 50, grosso modo), merecedoras de maior consideração: Maria Pedrini, Elisabetta Barbato, Gigliola Frazzoni, Cesy Broggini, Rosetta Noli, Mercedes Fortunati, Onelia Fineschi, Mara Coleva, Anna de Cavalieri, Marcella Pobbe, Orietta Moscucci, Luciana Serafini, Nora de Rosa, entre outras.
Sem dúvida, caro Hugo, mas nenhum nome comparável à Carteri, à Mancini e à Petrella.
Raul
Em termos de projecção, apenas incluiria a Frazzoni e a Pobbe às intérpretes que mencionou. Seja como for, muitos destes nomes poderiam ser comparados favoravelmente com muitos daqueles que hoje afrontam os mesmos papeis.
Tenho um c.d. Cetra com arias e duetos da Rossana Carteri e é excelente. Uma voz lindissima e fresca de grande capacidade comunicativa. Parece uma artista de muito bom gosto.
Caro Hugo,
Embora as que refere se distingam do grupo que enumerou, até porque deixaram gravações, nomeadamente a Frazzolli na Tosca com o Taddei e Tagliavini, elas nem por sombras se podem comparar à Petrella, a Eleonora Duce do verismo, à Mancini, um autêntico fenómeno vocal, sendo uma portentosa Abigail, o que diz muito, e muito boa Aida, Elvira do Ernani, Santuzza,..., e, evidentementemente à Stella.
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