quinta-feira, 14 de agosto de 2008

O (1/2) Anel de Platina



Em férias, ainda a procissão wagneriana vai no adro – em Bayreuth ou algures no sul de Portugal – e já esta criatura dissoluta regozija, banhando-se nas águas tumultuosas e douradas do Reno, enquanto se deslumbra com O (semi) Anel de Keilberth.

Os wagnerianos sabem bem a que ponto se encontra saturada a discografia anelar que, de Solti a Von Karajan, de Böhm a Furtwängler, não cessa de maravilhar, eternizando um dos maiores expoentes da lírica de todo o sempre, justamente Der Ring des Nibelungen.

Os mais pequenos e mesquinhos, incapazes de dissociar a criatura do criador, insistem nas afinidades da wagneriana com o nazismo, assunto que me entedia e aborrece.

Não sou - nem nunca fui - partidário de movimentos anti-semitas ou de outro qualquer tipo que apregoe a supremacia de uns sobre os demais. Se Wagner o era, com franqueza, é para o lado que melhor durmo! Mais: se os nazis apreciavam a lírica de Richard Wagner, só posso daí concluir que, pelo menos em matéria de gosto musical, os ditos nazis, bem vistas as coisas, tinham uma virtude…

Se nem o próprio Visconti – criatura que muito admirei e respeitei -, no superlativo Ludwig, me fez vacilar diante de um Wagner pobre em carácter, mas imenso em criatividade, o que dizer das mundanas e caducas teses que procuram identificar, precisamente, o carácter com a obra!!!

Escutai Wagner, senhores!


Pois bem, regressemos ao Walhall, ossia ao epicentro da trama anelar, desta feita pela mão de Joseph Keilberth, que a divindade de Wotan agraciou.

A leitura deste maestro conta com uma vantagem sobre as dos demais, que acima mencionei. Para além de ter sido captada ao vivo – como as de Furtwängler e Böhm (a primeira no alla Scala e a segunda em Bayreuth) -, a proposta de Keilberth, como nenhuma outra, encontra-se envolta em histrionismo, transpirando uma vitalidade teatral sem paralelo!

Solti será perfeito, Von Karajan majestoso, Böhm eloquente… e Joseph Keilberth, indubitavelmente, é dramático, expressivo, dinâmico, grandioso e metafísico!

A alma humana, por via de Keilberth, acede à transcendência – vide A entrada dos deuses no Walhall (em O Ouro do Reno) ou O adeus de Wotan (em A Valquíria).

Quanto o elenco, porventura dos mais homogéneos, em plena idade de ouro do canto wagneriano, destaco o Wotan de Hotter – o melhor baixo-barítono wagneriano desde que há memória discográfica -, ora deus, ora terreno, ora grandioso e terno, ora cruel e vil, com uma diversidade de registos emocionais impressionante. No respeitante ao canto… nunca escutei voz semelhante, contando com um plus, relativamente à interpretação de Solti, dez anos posterior à presente: a frescura e robustez da voz.

A outro nível, uma rotunda standing ovation para o grande Vinay, tenor baritonal de linhagem, heróico, de voz ampla e transcendente, que interpreta um Siegmund absolutamente incontornável.

Referências muito especiais, ainda no capítulo masculino, para o abjecto Alberich de Neidlinger, o Loge corrosivo de Lustig e os mastodônticos Fasolt e Fafner de, respectivamente, Weber e Greindl.

Quanto às interpretações femininas, apenas a Sieglinde de Brouwenstijn desilude, sobretudo pelo indisfarçável desconforto vocal. Varnay, por seu lado, em plena apoteose, juntamente com Flagstad e Nilsson formava, à época, um trio invencível – escandinavo, por sinal -, em matéria de interpretações wagnerianas. Embora Astrid Varnay fosse a mais imperfeita das três, tecnicamente, no capítulo do drama apenas Nilsson a ladeava!


Caro leitor, por ora, o estado de espírito desta alma está à vista! Quanto às duas últimas jornadas deste ciclo – Siegfried e O Crepúsculo dos Deuses -, veremos que surpresas nos reserva ainda Keilberth, o Teatral!
Será também de platina, o outro lado deste O Anel?

2 comentários:

Anónimo disse...

Apenas algumas ênfases e pequeníssimas discordâncias:

A ênfase vai que Der Ring des Nibelungen não é um dos maiores expoentes da lírica, mas sim o maior expoente. Como produto de Arte ele encontra-se ao nível da obra de Shakespeare, da Eneida de Virgílio, do Parténon, etc, etc,...

Mas vamos às óperas:
D´O Ouro do Reno tenho a dizer que discordo um pouco do que o João diz. Algures eu li que a gravação do Solti, na sua associação "interpretação + tecnologia" era a melhor gravação de todos os tempos. E é precisamente quando ocorrem grandes massas sonoras que vemos tal epíteto: descida e saída do Nibelheim e a entrada no Walhall, que fez história. E mais uma coisa: na gravação do Keilberth todo o período em que a dupla Wotam - Loge está no Nibelheim é acompanhada de um ruído irritante, justificado como um efeito cénico. Lógico que Hans Hotter é o Wotam do século e ainda por cima aqui no auge da sua voz. Acontece que o Wotam d´Ouro não é igual ao Wotam da Valquíria. O Wotam d´Ouro tem pouco de divino, é mais um negociante, que com Loge passeia-se humorosamente atormentando Alberich. Esse humor é muito bem captado por George London e não o encontro no Hotter do Keilberth. Também não vejo que a dupla de gigantes seja inferior na gravação do Solti. Quando muito equiparam-se. Mas uma das maiores mais-valias da gravação do Solti é a presença da Flagstad, aos 63 anos, na sua última gravação, quarenta anos depois de ter reavado pela primeira vez. Sobre esta interpretação passo a citar o grande crítico inglês John Steane (The Grand Tradition) " And the Rheingold Fricka is sumptuous in tone, scrupulous in rhythm and enunciation, unfailingly beautiful in the grain of the voice, no vibrato, no wobble, a pure, richly glowing sound: and hearing it, one can well believe that it is gods who are entering Valhalla".
Depois volto para a Valquíria.
Raul

Anónimo disse...

Da Valquíria também este grande testemunho, a meu ver, não substitui a gravação de Solti. A do
Keilberth tem apenas um "mais": os oito anos a menos de Hotter. Mas criticá-lo na versão do Solti parece-me uma "heresia", tão gigantesca é a interpretação, que só acusa um ligeiro gasto na zona aguda, ao passo que a dimensão trágica é imensa.
Astrid Varnay foi uma grande wagneriana, com potencial vocal e sendo da mesma idade da Nilsson, já cantava a Siglinde para a Brunilde da Flagstad em 1941. Mas o timbre não tem a luminosidade e beleza da Flagstad -- cantora que ela, em entrevista à Gramophone aquando da edição desta gravação, considerava o seu modelo -- nem o metal da Nilsson. Grande Brunilde, mas a Nilsson, a meu ver, não tem rival neste papel.
Gre Brouwenstijn, uma grande cantora, ao contrário do João não me desilude e até acho que é uma muito boa Sigliende, mas claro a Crespin tem mais voz e é mais apaixonada, há mais "eros" na sua voz.
Raul