(Giuditta Pasta, a primeira Amina da história)
A opera A Sonâmbula, de Bellini, além de todos os méritos musicais que contem, apresenta-nos um prodigioso quadro clínico de histeria, sendo de realçar o predomínio de sintomatologia dissociativa - o sonambulismo.
A jovem e doce Amina, menina singela, bem comportada, de conduta irrepreensível e modos graciosos, encontra-se noiva de Elvino, um rico agricultor suíço. No dia em que firmam o noivado, eis que Rodolfo, rico e poderoso conde, instala-se na aldeia onde o futuro casal vive.
Desde logo, entre Amina e Rodolfo cria-se um clima marcado pelo desejo. O conde dirige-lhe galanteios, que ecoam eroticamente na jovem.
Evidentemente, o conde dispõe de atributos mais excitantes que o agricultor!
Desde logo, a virilidade surge expressa na voz de baixo – recordo que Elvino, o rival de Rodolfo, é geralmente interpretado por tenores líricos, de voz límpida e de fácil agudo... -, nos modos aristocráticos e no glamour. É verdade que, de início, o conde oculta a sua condição nobiliárquica, embora todos, sem excepção, a intuam, dados os múltiplos indícios de desafogo e linhagem que o senhor vai revelando.
(cartaz publicitário de A Sonâmbula, com Maria Malibran como intérprete do papel titular da ópera)
O conflito instala-se, então, em Amina: a luta entre o desejo por Rodolfo e a defesa contra o mesmo desejo ameaçam assumir proporções neuróticas.
Uma menina decente, que zele pela sua conduta, não pode permitir-se desejar outro homem, além do seu... O facto é que o desejo por Rodolfo é difícil de camuflar.
Num primeiro momento, a jovem irá reprimir o desejo, por via do recalcamento – o desejo é esquecido. Porém, como recorda Freud, o recalcamento não é um mecanismo perfeito! Uma das formas que o material recalcado tem de escapar à censura – instância que materializa o recalcamento, justamente - consiste em retornar à consciência, nomeadamente através da formação de sintomas!
Assim, lado a lado com a construção onírica, e os lapsos, a formação de sintomas dá corpo ao retorno do recalcado. Ou seja, o material que o indivíduo se esforça por manter inconsciente - não sendo capaz, por isso mesmo, de o recordar -, de forma disfarçada, consegue aceder à consciência.
(a famosa cena de sonambulismo, do segundo acto)
No caso presente, o sintoma – sonambulismo – tem o valor de sinal, representando o desejo que Amina reprimira! De facto, comme par hasard, o sonambulismo leva a jovem inocente direitinha ao quarto do Conde… para fazer sabe Deus o quê…
Dito de outro modo, o sintoma estabelece um compromisso entre possibilidade da realização de um desejo e a defesa contra o mesmo. De facto, não podemos dizer que a jovem Amina concretize o que quer que seja com o viril aristocrata, embora também não possamos afirmar que o seu anseio desapareça!
Assim, neuroticamente, a donzela realiza parcialmente o desejo – o sonambulismo aproxima-a do conde – sem que a sua integridade moral seja atingida ou questionada!
Ora, se por um lado a conflitualidade neurótica revela um funcionamento mental bem elaborado, fazendo prova de grande dinamismo intra-psíquico, por outro - para o bem e para o mal -, jamais o sujeito neurótico pode assumir e concretizar o seu desejo mais profundo.
(Jenny Lind, outra famosa Amina)
No caso de Amina, aquilo a que assistimos é a uma distorção patológica do desejo: na impossibilidade de o poder viver com o homem que a excita, a jovem retorna para os braços de Elvino, que por muito acolhedores e ternos que sejam, não a tratarão como fêmea.
Moral da história: a união com Elvinito trará a Amina uma valentíssima frigidez, sem sombra de dúviva!!! Ou não fosse a menina uma grandessíssima histérica!
10 comentários:
Parabéns! O conhecimento e a simplicidade esclarecida dos seus textos continuam a deliciar-me. Obrigado pela clarividência. Cumprimentos.
Caro João,
Para leigo entender: poderá a visualização de um DVD com a, hummm..., Netrebko, por exemplo, vir-me a causar sonambulismo??!!!
Saudações,
Heitor
Goldluc,
Só posso agradecer-lhe ;-)))
Volte sempre e comente!!!
Heitor,
Bom... espero que a sua cara-metade não tenha acesso a este espaço, onde revela um desejo secreto... pela bela Annesca ;-)
Quem dera a muitos uma bela neurose com que se entreter, no lugar de um narcisismo com que se debater!
Finalmente. Há seculos esperava uma critica assim.
Anónimo,
E se se identificasse?
Margot,
:-))))))))))))))))))))))
Sempre tive queda para os narcísicos, principalmente quando são colegas psis. ;)
Mas de facto concordo com o carissimo anónimo. Custa-me ler tanta critica destrutiva quando, provavelmente, nem sabe cantar.
É mais fácil falar do que fazer... mas é muito mais interessante cantar do que criticar, isso garanto. E faz melhor à saúde, também. Porque "quem canta seus males espanta". Experimente!
Saudações liricas
Margot, soprano lírico ligeiro e psi! :D
Margot,
Sempre apreciei muito os sopranos líricos-ligeiros-psis ;-)))))
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