Gravada ao vivo em Amesterdão, em 1998, esta Tosca conta com três grandes glórias: o Scarpia de Terfel, a interpretação de Malfitano e a direcção de Chailly.
(DECCA 074 3201)
Pessoalmente, creio que se o Scarpia desta leitura não fosse Terfel, jamais a dita cuja teria sido editada em dvd...
Terfel debutara, nesta produção, no papel mais perverso que a ópera alguma vez concebeu, revitalizando o sadismo e a distorção. A sua interpretação, gloriosa e fascinante, atinge níveis absolutamente pornográficos.
Em meu entender, até à data de publicação desta Tosca, dois intérpretes marcaram (e condicionaram!) a interpretação do abjecto barão: Gobbi, nos anos 1950 - 1960, e Raimondi, em finais do século passado.
O resto é paisagem...
Gobbi investia na malícia e Raimondi na distorção de carácter. Ambos eram fabulosos, mas algo pudicos... Terfel vai mais longe do que os antecessores, fazendo da lascívia o esqueleto da sua incarnação.
A voz é colossal, ultra-viril, vincada por despudor, requinte, asco e uma ousadia impressionantes, nunca bordejando a grosseria! Bryn Terfel movimenta-se cenicamente como se de um falcão se tratasse: preciso e certeiro, sem clemência, ávido de carne desprotegida...
Em Scarpia, sexo rima com poder - tanto mais se for praticado por via da “imposição-sugerida” -, sendo o poder, gratuita e indiscriminadamente utilizado, essencial no seu funcionamento. Como poucos, Terfel sabe-o, intuitivamente.
(Bryn Terfel)
Catherine Malfitano, nesta produção, interpreta a figura de Floria Tosca.
Malfitano nunca foi grandemente acarinhada pelas editoras, quiçá pelo vibrato, por vezes muito incómodo, que se foi acentuando com a idade...
Em 1992, no Covent Garden, tornou-se conhecida do grande público operático ao interpretar uma extraordinária Salomé (que alguém que muito prezo, em boa hora, me ofereceu!) À época, com 42 anos, o dito vibrato já fazia das suas, maculando a mítica dramatização.
Por ocasião desta Tosca, Catherine contava com 50 primaveras. A prestação cénica camufla-as, iludindo-nos; a voz, nem tanto...
De facto, vocalmente, trata-se de uma Tosca de final de carreira, estando o registo agudo bastante comprometido. Ainda assim, o talento dramático da intérprete compensa as fragilidades vocais.
Malfitano desenha uma Tosca arrebatada, ora pueril, ora fogosa, profundamente caracterizada. Pessoalmente, prefiro as interpretações mais ousadas, que não camuflam o desejo... A artista nova-iorquina opta pela repulsa do desejo, no confronto com Scarpia. Não se pode falar em ousadia, neste capítulo!
Na morte do barão, contudo, a soprano transcende-se, literalmente vomitando um Muori de antologia, que repete à exaustão. Eis Floria Tosca fêmea selvática, por fim despudorada!
(Catherine Malfitano)
Richard Margison compõe um Cavaradossi convencional, apesar da qualidade do spinto. A caracterização é superficial, a mímica pobre e a figura em nada ajuda.
No capítulo das interpretações, restam-me duas longas palavras para saudar a magnífica leitura orquestral do Royal Concertgebouw e a direcção de Chailly. Do trabalho conjunto resulta uma interpretação monumental, privilegiando as grandes cenas, em detrimento das passagens mais líricas. A entrada de Scarpia e o Te Deum são estrondosos, em requinte e grandiosidade, sobretudo.
Definitivamente, Chailly, por via do rigor e meticulosidade, destaca o valor dramático da partitura, sublinhando o trágico e monumental. A meu ver, trata-se da Tosca mais wagneriana que conheço, nada tendo que ver com as leituras mais pueris e líricas!
(Riccardo Chailly)
Por fim, resta-nos uma curta reflexão sobre a encenação, que pouco mais faz do que tudo subjugar à tragédia inexorável e finitude.
A concepção cénica é demasiadamente grandiosa e dispersa, particularmente no acto I, propondo décors de gosto duvidoso - embora a eficácia teatral seja indiscutível. A proposta cénica é mais subtil e requintada no segundo acto, particularmente na ornamentação barroca do Barão Scarpia e respectivo ambiente.
Os figurinos são requintados e adequados, particularmente ricos em subtilezas, no caso de Tosca. Quanto às vestes de Scarpia, apesar da ousadia, pecam pelo toque algo "abichanado"... O Barão é um garanhão, sem sombra de dúvidas, caramba!
O trabalho de iluminação revelou-se igualmente eficaz, sobretudo no tratamento das cenas lúgubres – actos I e III.
Dito isto, fiel leitor, se procura uma Tosca plenamente dramática – quiçá à la Sarah Bernhardt?! -, sobretudo centrada na teatralidade, esta é A Tosca. Quanto ao lirismo, elegância e subtileza vocais... procure outra, apesar do mítico Scarpia Terfeliano.
(DECCA 074 3201)
Pessoalmente, creio que se o Scarpia desta leitura não fosse Terfel, jamais a dita cuja teria sido editada em dvd...
Terfel debutara, nesta produção, no papel mais perverso que a ópera alguma vez concebeu, revitalizando o sadismo e a distorção. A sua interpretação, gloriosa e fascinante, atinge níveis absolutamente pornográficos.
Em meu entender, até à data de publicação desta Tosca, dois intérpretes marcaram (e condicionaram!) a interpretação do abjecto barão: Gobbi, nos anos 1950 - 1960, e Raimondi, em finais do século passado.
O resto é paisagem...
Gobbi investia na malícia e Raimondi na distorção de carácter. Ambos eram fabulosos, mas algo pudicos... Terfel vai mais longe do que os antecessores, fazendo da lascívia o esqueleto da sua incarnação.
A voz é colossal, ultra-viril, vincada por despudor, requinte, asco e uma ousadia impressionantes, nunca bordejando a grosseria! Bryn Terfel movimenta-se cenicamente como se de um falcão se tratasse: preciso e certeiro, sem clemência, ávido de carne desprotegida...
Em Scarpia, sexo rima com poder - tanto mais se for praticado por via da “imposição-sugerida” -, sendo o poder, gratuita e indiscriminadamente utilizado, essencial no seu funcionamento. Como poucos, Terfel sabe-o, intuitivamente.
(Bryn Terfel)
Catherine Malfitano, nesta produção, interpreta a figura de Floria Tosca.
Malfitano nunca foi grandemente acarinhada pelas editoras, quiçá pelo vibrato, por vezes muito incómodo, que se foi acentuando com a idade...
Em 1992, no Covent Garden, tornou-se conhecida do grande público operático ao interpretar uma extraordinária Salomé (que alguém que muito prezo, em boa hora, me ofereceu!) À época, com 42 anos, o dito vibrato já fazia das suas, maculando a mítica dramatização.
Por ocasião desta Tosca, Catherine contava com 50 primaveras. A prestação cénica camufla-as, iludindo-nos; a voz, nem tanto...
De facto, vocalmente, trata-se de uma Tosca de final de carreira, estando o registo agudo bastante comprometido. Ainda assim, o talento dramático da intérprete compensa as fragilidades vocais.
Malfitano desenha uma Tosca arrebatada, ora pueril, ora fogosa, profundamente caracterizada. Pessoalmente, prefiro as interpretações mais ousadas, que não camuflam o desejo... A artista nova-iorquina opta pela repulsa do desejo, no confronto com Scarpia. Não se pode falar em ousadia, neste capítulo!
Na morte do barão, contudo, a soprano transcende-se, literalmente vomitando um Muori de antologia, que repete à exaustão. Eis Floria Tosca fêmea selvática, por fim despudorada!
(Catherine Malfitano)
Richard Margison compõe um Cavaradossi convencional, apesar da qualidade do spinto. A caracterização é superficial, a mímica pobre e a figura em nada ajuda.
No capítulo das interpretações, restam-me duas longas palavras para saudar a magnífica leitura orquestral do Royal Concertgebouw e a direcção de Chailly. Do trabalho conjunto resulta uma interpretação monumental, privilegiando as grandes cenas, em detrimento das passagens mais líricas. A entrada de Scarpia e o Te Deum são estrondosos, em requinte e grandiosidade, sobretudo.
Definitivamente, Chailly, por via do rigor e meticulosidade, destaca o valor dramático da partitura, sublinhando o trágico e monumental. A meu ver, trata-se da Tosca mais wagneriana que conheço, nada tendo que ver com as leituras mais pueris e líricas!
(Riccardo Chailly)
Por fim, resta-nos uma curta reflexão sobre a encenação, que pouco mais faz do que tudo subjugar à tragédia inexorável e finitude.
A concepção cénica é demasiadamente grandiosa e dispersa, particularmente no acto I, propondo décors de gosto duvidoso - embora a eficácia teatral seja indiscutível. A proposta cénica é mais subtil e requintada no segundo acto, particularmente na ornamentação barroca do Barão Scarpia e respectivo ambiente.
Os figurinos são requintados e adequados, particularmente ricos em subtilezas, no caso de Tosca. Quanto às vestes de Scarpia, apesar da ousadia, pecam pelo toque algo "abichanado"... O Barão é um garanhão, sem sombra de dúvidas, caramba!
O trabalho de iluminação revelou-se igualmente eficaz, sobretudo no tratamento das cenas lúgubres – actos I e III.
Dito isto, fiel leitor, se procura uma Tosca plenamente dramática – quiçá à la Sarah Bernhardt?! -, sobretudo centrada na teatralidade, esta é A Tosca. Quanto ao lirismo, elegância e subtileza vocais... procure outra, apesar do mítico Scarpia Terfeliano.
11 comentários:
Olha!... já não me lembrava.
Milagre. Estou em Pequim e consegui entrar neste blogue!!!
Raul
Caríssimo amigo João,
Discordo totalmente com a sua afirmação de que na segunda metade do século XX houve dois Scarpaias e o resto era paisagem. Aliás estou espantado com esta afirmação. Para além de alguns bastante credíveis, houve um, muito superior ao Raimondi, e repito, muito superior ao Raimondi, podendo ser uma alternativa ao grande Gobbi. O seu nome é Giuseppe Taddei, que escontramos na super-famosa gravação do Karajan com a Leontyne Price e Giuseppe di Stefano. Felizmente tive a oportunidade de ver em 1972 em Portugal este Scarpia e a interpretação que vi em palco não tem adjectivos. Nunca me esqueci da entrada em cena no Primeiro Acto. Todos os olhares do público recuaram com a imponência da figura, com a temeridade da sua expressão e, acima de tudo, com a voz espectacular subjugando o som orquestral. Ouçam a cena do interrogatório no segundo acto da Tosca com a Price. A milhas de Ruggero Raimondi, falso barítono, com pouca voz e que segue a linha aristocrática de Tito Gobbi.
Raul
Como nunca vi o Scarpia de Taddei, limito-me a concordar com o autor deste blogue. Principalmente em relação a Gobbi, o Scarpia que mais me amedronta.
Terfel poderá ter um ar ligeiramente gay nesta produção, não esqueçamos que isto aconteceu em Amesterdão, o que o torna provavelmente o Barão mais sexy da história de Tosca (embora eu ache que essa estética do cabedal e das correntes advém do seu carácter "sado").
Este Barão é um sedutor, embora pérfido, como Terfel tão bem o sabe fazer. Acaba até por ser estranho que Malfitano prefira o Cavaradossi de Margison, que tanto visual como vocalmente não funciona.
Uma Tosca interessante pelo Terfel, concordo, e não pela Malfitano. Já na sua Salomé de Londres também Terfel triunfou.
Cumprimentos.
ADENDA:
Apesar dos problemas vocais, também considero aqui uma grande interpretação de Malfitano (pena que a voz não corresponda ao resto).
Caro co-bloguer Paulo,
Não é preciso ver o excepcional Scarpia do Taddei. Basta ouvir a Tosca do Karajan, rival da De Sabata/Callas/di Stefano/Gobbi". É ouvir o grande dueto do Segundo Acto com a Price. Ao contrário do Gobbi, que é mais aristocrático, o Taddei é mais chefe da polícia, mais brutal. Mas o talento deste grande artista pode ser visulisado numa representação do Falstaff de 1980 do Festival de Salzburgo, onde também conduzido pelo Karajan está incluído num elenco de luxo de que se destaca a Ludwig e o Panerai. E o Taddei já tem 62 anos.
Raul
Caro Raul.
Eu sei que Taddei foi um grande Scarpia. Referia-me ao facto de nunca o ter visto no papel, nem em Lisboa nem em gravações de vídeo. Concordo com o João quando comparo os vários Scarpias que vi, ao vivo ou em vídeo. Seguramente Taddei tem de ser considerado um dos grandes intérpretes da personagem. Nem ponho isso em causa.
Já agora, caro co-bloguer, para mim o senhor continua a aparecer-me como anónimo...
Cumprimentos.
Eu posso aparecer como anónimo, mas subscrevo o que digo com o meu nome. Assim procedo há quase dois anos e sou amigo do criador deste blogue. Sou uma pessoa perfeitamente "identificada"!
Sou uma das pessoas que mais assíduas deste blogue, mas acontece que desde fins de Agosto que vivo em Pequim e até dia 17 deste mês não conseguia entrar no blogue, pois aqui existe uma censura muito apertada sobre este tipo de actividade na internet. Nada me garante que esta äbertura"continue.Ësperemos que sim.
Raul
Caro Raul,
Fiquei esclarecido.
Obrigado.
Paulo,
É verdade! O Terfel da Salome do Covent Garden é estrondoso! Mas o do Sinopoli...
João,
Mudaste? De onde para onde? Nãe estiveste sempe no mesmo O Chiado???
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