domingo, 3 de junho de 2007

Macbeth no São Carlos: sob o signo da mediania

Macbeth, Teatro Nacional de São Carlos, récita de 2 de Julho de 2007.

Com este conjunto de récitas de Macbeth, o TNSC dá expressão à sua robusta quota verdiana.

Com efeito, desde há vários anos, o nosso teatro lírico tem-nos brindado com inúmeras récitas de ópera de Verdi, o mor das vezes de indesmentível qualidade: Falstaff, La Traviata, Simon Boccanegra, Stiffelio, Otello, para além de Macbeth, ora em cena.

Do meu ponto de vista, o sucesso deste investimento na obra de G. Verdi decorre, em grande medida, da qualidade dos intérpretes: Guelfi e Maestri (respectivamente, os intérpretes dos papeis titulares de Falstaff e Simon, figuras maiores do actual canto verdiano), Malagnini (Stiffelio e Otello) e Theodossiou (Violetta Valéry, Lina e Desdemona) - intérpretes verdianos em ascensão meteórica -, para além de outros muito reputados, como Sabatini (Alfredo), por exemplo.

Hélas, o Macbeth de Verdi tem pouco que ver com o de Shakespeare, faltando-lhe mestria e sentido dramático pleno.

Para além de Macbeth ter sido a primeira incursão verdiana na obra de William Shakespeare, o compositor iniciara o seu trabalho há menos de 10 anos (Oberto estreara em 1839), estando, portanto, ainda muito longe da maturidade e plenitude expressivas – Don Carlos, Aïda, Otello e Falstaff.

Em minha opinião, a veia genial do compositor apenas começou a afirmar-se com a trilogia, inaugurada com Rigoletto (1851) e encerrada com La Traviata e Il Trovatore (ambas estreadas em 1853).

Nos antípodas desta (algo) fracassada adaptação, Otello e Falstaff provaram ao mundo que Shakespeare tem indesmentíveis afinidades com a lírica, por via do trabalho de G. Verdi.

Macbeth – tanto para o dramaturgo inglês, como para o compositor italiano - é uma tragédia absoluta, versando sobre a ambição desmedida pelo poder.

Na trama, a relação com / ao poder é alvo de um tratamento psicológico interessante: enquanto o protagonista contrapõe à ambição a culpabilidade e o remorso humanizantes, a protagonista incrementa a primeira com uma infinita perversidade, que contem a marca da urdidura e da malícia absolutas.

Macbeth pouco mais é do que um instrumento da mulher – sequiosa de poder -, que dele se serve, a qualquer preço, para nutrir as suas terríficas aspirações fálicas.

A meu ver, encenação que se preze deve aludir a estas realidades.

Ora, é bem verdade que a produção desta ópera – assinada por Barbalich (encenação), Lagattolla (cenografia e figurinos) e Vittoriano (luzes) – teve em consideração as enunciadas marcas maiores da(s) obra(s); contudo, não se distanciou do óbvio.

A dita produção esforçou-se por aludir e sublinhar o lúgubre, a malícia, a intriga, a inveja e o horror, recorrendo invariavelmente a clichés cromáticos e cénicos: d’A Obra ao Negro, passou-se para O Vermelho e o Negro, i.e., identificou-se vermelho a morte - destruição e negro a perfídia - malignidade.

Até aqui, apesar do óbvio, a coisa poderia ter funcionado!

O problema residiu na ineficácia cénica, teatral e dramática desta concepção: o cenário e guarda-roupa encontravam-se absolutamente dominados pela escuridão, sendo quase imperceptíveis eventuais rasgos ou subtilezas!
Uma imensa massa negra, quase informe...

Previsivelmente, com a queda de Macbeth, as trevas dissipam-se, emergindo a luz: o branco imaculado (?) domina, então, a cena.

Déjà vu, em cima de déja vu, para mais pouco eficaz...

Em termos de solistas, pouco há a enaltecer, em minha opinião.

Reuter (papel titular) é bom actor e canta bem, revelando grande equilíbrio nos registos, a par de disciplina e técnica segura. Em contrapartida, peca pela falta de garra cénica, carisma e brilho verdiano.

De uma figura deste calibre espera-se uma inundação de vivências, conflitualidade a rodos e um protagonismo inquestionável.
Tive sempre a sensação de que Reuter era um entre tantos outros...

Quanto à Lady Macbeth de Theodossiou, pouco há a enaltecer, contrariamente às expectativas.

Esta figura verdiana – lado-a-lado com Abigaíl (Nabucco), Odabella (Attila) e Gisela (I Lombardi) – inscreve-se no primo verdi, porventura o mais exigente em termos vocais e técnicos. À época, a tradição belcantista mantinha o seu peso.

Embora a distinção não seja, nem clara, nem pacífica, creio que a figura de Lady Macbeth se aproxima mais do dramatico di agilita do que do lirico spinto – Aïda, Elisabeth, Elvira, etc.

Dimitra Theodossiou é uma grande actriz, uma excelente cantora e uma superlativa intérprete, com provas dadas, nomeadamente no São Carlos.
Desta feita, a excepção confirmou a regra...

As fragilidades técnicas da intérprete – vibrato mal controlado, sobretudo - não são problemáticas, por si só. Recorde-se que as maiores Lady Macbeth de que há memória – Callas, Varnay e Rysanek enfermavam de indisfarçáveis fragilidades da mesma natureza!

Theodossiou escravizou a emissão à berraria e o vibrato à estridência, entregando-se a maneirismos inadmissíveis, provas concretas de uma personagem mal assimilada, do ponto de vista dramático: histrionicamente, procurou sobressair a qualquer preço, entregando-se a liberdades em tudo estranhas a um artista sério.
A esquecer...

O Banco de Furlanetto (Giovanni, e não Ferruccio) prometeu – pelo timbre nobre – no Acto I, decepcionando em Studia il passo, pela falta de volume.

Paradoxalmente, a grande glória vocal da récita foi o Macduff de Sartori: voz brilhante e luminosa, bem aberta, timbre redondo e pujança qb. Um regalo!
Fábio Sartori contrariou os desígnios verdianos, conferindo à sua personagem um brilho e protagonismos inusitados!
Temos Homem.

Para terminar, uma palavra de louvor ao coro, pela disciplina, afinação e sentido de coesão.

Quanto à orquestra e sua direcção – a cargo de António Pirolli – dir-se-ia que cumpriu, com relativa unidade, sem grande brilho, nem vitalidade particular.

Em meu entender, este Macbeth pouco teve que ver com o último que passou pelo TNSC, protagonizado pelo grande Brusson, em 1981, justamente no auge da gloriosa carreira daquele que foi, unanimemente, o maior barítono verdiano do final do século XX.

Quanto à quota verdiana da Era Pinamonti, aspas, aspas... Ou seja, este Macbeth não deixa saudades.

Em jeito de reparação, sugiro ao fiel e paciente leitor - sobretudo ao da linha verdiana - um dos mais completos, equilibrados e refinados Macbeth da discografia (por Cappuccilli, Verrett, Domingo, Ghiaurov e Abbado):


(DG 449 7322)

14 comentários:

Teresa disse...

Dissoluto Punito (ou pode ser Don Giovanni para os amigos?),

Encontrará aqui o conceito e as regras do TThinking Blogger Award: http://www.thethinkingblog.com/2007/02/thinking-blogger-awards_11.html

, mas eu simplifico: deve fazer um post onde colará o bonequinho do galardão (que pode copiar de lá ou da Gota de Rantan Plan) e indicará os seus cinco nomeados, com link.

Será bom avisá-los de que foram escolhidos, evidentemente.

Anónimo disse...

João,
Não comento a récita, porque não a vi, e logicamente a sua excelente crítica. No que toca à ópera propriamente dita, discordo de si, porque já considero esta ópera uma obra-prima verdiana. A adaptação de Shakespeare está muitíssimo longe das obra-primas finais, Otello e Falstaff, mas a obra como melodrama romântico é fabulosa. A música é lindíssima e original no percurso verdiano com árias entre as melhores de Verdi e com cenas arrebatadoras (Dueto Macbeth-Lady, final do Primeiro acto e Cena das bruxas com Macbeth). Na música do Macbeth, embora nos apercebamos do seu estádio evolutivo, ainda não totalmente maduro, o melodista e o homem de teatro fazem um trabalho genial.
Raul

Anónimo disse...

A propósito desta ópera, sugiro a leitura da "crítica" do Públco... e o comentário da mesma no blog do Crítico Musical... ;)

HS disse...

Que coro é que andam para aí a ouvir? Será o mesmo que eu ouvi? Estarás surdo caro Dissoluto? Será que no Sábado não massacraram o Verdi como na estreia?

Il Dissoluto Punito disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Il Dissoluto Punito disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Il Dissoluto Punito disse...

Moura,

Já li. No tocante à Theodossiu, o senhor que assina a crítica é, no mínimo, muito polémico!

Il Dissoluto Punito disse...

HS,
Visivelmente, não ouvimos o mesmo coro, ou a coisa foi ao lugar (enquanto tu assististe à estreia, eu asisti à segunda récita) Também acontece, não?

Anónimo disse...

Gostei muitissimo da Dimitra Theodossiu quando a vi no TNSC já há alguns anos na Traviata. A partir daí pareçeu-me uma cantora cada vez mais frágil e desigual. A emissão endureçeu, o vibrato dominou os agudos em todos os registos que não o pianissimo.
Pareçe-me que o podemos atribuir a uma técnica imperfeita, à escolha de um reportório cada vez mais pesado, inadequado a uma voz bela e extensa mas não excepcionalmente volumosa e ao excesso de récitas cantadas um pouco por todo a Itália de provincia!
Tenho muita pena e apreciei a Medeia em que triunfou exactamente por ser um papel que não solicita o registo agudo e onde alguma "dureza" vocal pode contribuir para a construção do personagem mas não posso perdoar uma Desdémona "dura", desigual em registo Verista nos duetos com o Otello!

J. Ildefonso.

Anónimo disse...

Quanto ao Macbeth não posso deixar de concordar com o Raúl considerando-a a mais interessante de todas as obras de juventude de Verdi. Sinceramente pareçe-me até uma obra prima! Num estilo muito diferente do Othello e Falstaf mas mesmo assim uma obra-prima. Aliás a partitura do D. Carlos já para não falar do Simão Bocanegra também têem as suas fragilidades.... Já para não falar da Força do Destino!


J. Ildefonso.

Anónimo disse...

João Ildefonso,
Acabo de ler a crítica da Gramophone à Norma pela Gruberova e praticamente coincide (!) com o que eu lhe disse. Queria citar-lhe o título: "IT´S BEEN A LONG WAIT BUT HERE´S PROOF: THIS IS THE GREATEST NORMA OF THE DAY"
e umas passagens:
"Edita Gruberová waited until last year to sing Norma on the stage for yhe first time....Her singing and acted bring out the complete portrait of the guilt-ridden priestress...Gruberová brings a lifetime´s experience of singing "bel canto" opera and caresses Bellini´s vocal lines with many subtle touches.Almost entirely absent is that manneirism of sliding between notes which has marred some of her singing in the past. Every phrase is moulded with feeling and reticence of a great artist."
Só há uma grande Norma por geração e se a Gruberova o é, acabando este vazio deixado pela Caballé, então ela é a melhor cantora de ópera italiana do mundo. Este DVD é um grande acontecimento para o mundo da ópera.
Raul

Anónimo disse...

Agora já posso falar sem nenhum tipo de pudor porque já vi o Macbeth do TNSC!
Realmente o que vi dificilmente apelidaria de "obra prima"! Felizmente existem gravações.
A produção é competente mas desprovida de originalidade algumas momentos de mau gosto não comprometem uma certa elegancia do conjunto mas.... no dia seguinte não ficou nada que nos tenha marcado. O maestro limita-se a obedecer aoscaprichos e necessidades dos cantores e a orquestra "lá vai tocando com enfado mais ou menos todos ao mesmo tempo". O coro masculino esteve bem o femenino como habitualmente péssimo. Do elenco destaco o tenor que tem voz agradável e bela, o baixo que é bastante digno e os secundários com destaque para o Carlos Guilherme que continua a ser um exemplo de profissionalismo raro no nosso país. O Baritono tem voz bela mas um pouco clara para o papel e cansa-se facilmente, o soprano esteve péssimo. Os graves são enixistentes, o registro médio aonde assenta metade do papel é fraquissimo e os agudos são estridentes e desagradáveis. Arruinou o dueto com o Macbeth e não teve um único bom momento nas duas primeiras arias, pensei que melhora-se na ária do sonanbulismo com o manejo dos pianissimos mas nem isso. Ainda assim o público adorou.

J. Ildefonso.

Anónimo disse...

Querido Raúl.

Comprei A Filha do Regimento com o Florez e a Cioffi e passei uma tarde muito divertida.
O Florez está excelente, igual a si própio. Tem um bigodinho terrivelmente ridiculo que lhe dá muita graça! A Cioffi está magistral e fascina com a sua voz tão peculiar de soprano ligeiro um pouco acida nos agudos mas com um timbre escuro e aveludado nos graves. Magistral.

J. Ildefonso.

Anónimo disse...

É verdade. Quanto à Norma da Gruberova... só para o próximo mês.

J.