sábado, 17 de novembro de 2007

Monsieur Giovanni



Depois de um Cosi de referência e um Le Nozze notável, René Jacobs encerra a sua visão da trilogia mozartiana com chave de ouro, revitalizando Il Dissoluto Punito.

Pessoalmente, considero absolutamente ténue a linha que divide a interpretação criativa do manerismo histriónico e gratuito. Interpretar é, acima de tudo, revitalizar e animar uma composição. Se nada acrescentarmos ao manuscrito, entramos numa dinâmica de submissão; se animarmos uma partitura, ou a recriamos, ou a desvirtuamos, por via da subversão.

O equilíbrio é difícil, facilmente se entende.

Pois bem, Jacobs recria um Don Giovanni totalmente idiomático, ousado, livre e original, sem nunca ceder a malabarismos duvidosos, nem tão pouco a liberdades excessivas. A obra original é respeitada, sendo recriada em clima de câmara, de forma magistral.

Jacobs investe nesta abordagem em dois sentidos, que se conciliam na perfeição: na teatralização do drama e na liberdade da leitura. Indubitavelmente, este trabalho tem subjacente uma concepção. Poucos registos desta ópera obedecem a uma orientação prévia, devidamente sustentada…

De facto, uma das glórias deste registo assenta na sua qualidade teatral. Jacobs é plenamente jocoso, mordaz, gracioso, dramático e irónico, instigando os demais intérpretes a segui-lo… e todos alinham na proposta!

Pessoalmente, diria que Jacobs é gracioso e eufórico, onde Furtwängler é dramático e sombrio.

A verdade é esta, fiel leitor: por mais que procure no meu baú, não encontro um Don Giovanni tão rico e vigoroso, no tocante à riqueza teatral, com recitativos animados, vibrantes, impregnados de dinamismo, ironia, malícia, graça e tragédia.
Nenhum outro lhe chega aos calcanhares, neste ponto particular!

A outro nível, o maestro propõe-nos uma leitura muito livre da obra, particularmente expressa nas ornamentações vocais, na gestão dos tempi e no acompanhamento dos recitativos.

Quanto aos solistas, o maestro belga socorreu-se de cantores maioritariamente jovens, e ainda com poucos vícios. Arriscou muitíssimo – Weisser e Pasichnyk -, previsivelmente brilhou – Regazzo -, tendo surpreendido gloriosamente – Tarver, Borchev e, sobretudo, Im.

Weisser é um jovem barítono, ainda pouco oleado no papel titular da ópera. O timbre é agradável, a técnica bem sustentada e a composição cénica sólida – particularmente convincente na malícia e seus desdobramentos. A meu ver, decepciona apenas pela falta de legato. É uma pena!

A digna e correcta Donna Anna de Pasichnyk afirma-se pela qualidade das vocalizações e pelo dinamismo interpretativo. Vacila no Or sai chi l’onore mas brilha no Non mi dir.

Fiquei literalmente arrasado com o Leporello de Lorenzo Regazzo, no melhor dos sentidos: o timbre escuro – cada vez mais na linha do baixo – combina na perfeição com a ironia vil e corrosiva do servo que compõe. A sua interpretação é de uma ousadia triunfal!

Até à data, Taddei era o meu criado dilecto; doravante, já não sei…

Sunhae Im – Zerlina - constitui o melhor e mais sólido argumento vocal desta gravação. A voz nervosa e ágil – belíssima - é muito redonda, melodiosa e de uma correcção estilística impressionante. Relembra Streich, a maior Zerlina da história.

Apreciei ainda muitíssimo as prestações de Tarver – Don Ottavio – e Borchev – Masetto. O primeiro afirma-se pelo lirismo pueril (além de um Il mio tesoro de sonho!) e o segundo pela robustez da interpretação.

Quanto aos demais solistas – Pendatchanska (Donna Elvira) e Guerzoni (Il Commendatore) -, diria que cumpriram, sem evidência de brilho digno de referência.

Este é, pasme o leitor, o meu 38º Don Giovanni. Pois bem, sem hesitar um segundo que seja, coloco-o na prateleira dos maiores – Giulini’59, Mitropoulos, Furtwängler (dvd), Muti (dvd) e Muti.

Dito isto, os puristas e ortodoxos vão chocar-se com as liberdades e ousadias da troupe, enquanto os vanguardistas se regozijarão! No final, creio que todos farão vénias ao trabalho de René Jacobs, que faz um milagre com um elenco desconhecido, em terras há muito dominadas por antigos – e respeitáveis, há que reconhecê-lo! – fantasmas!

1 comentário:

Anónimo disse...

Eu pessoalmente gosto muito do Jacobs. Aliás acho-o muito melhor maestro do que cantor pois nunca apreciei muito o seu timbre um pouco "esteril". É exactamente o exaltar a dimensão "bufa" das óperas de Mozart a cracteristica mais saliente...e bastante apropiada... a destacar-se nas suas gravações. Gosto também da sua gravação da "Clemencia de Tito" mas posso ser suspeito na minha apreciação visto ser uma ópera que amo muito.

J. Ildefonso.