segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Don Carlo – Teatro Nacional de São Carlos, récita de 23 de Outubro de 2011








Este Don Carlo poderia ter marcado a minha reconciliação com o São Carlos, que deixei de frequentar na sequência do escândalo protagonizado pela dupla Pires de Lima / Vieira de Carvalho, que se consubstanciou na nomeação do incompetentíssimo Chrostopher Dammann para a direcção do teatro. Foram anos de ausência justificada.

Pois bem, a verdade é que a dita reconciliação terá de sofrer mais um adiamento, posto que este Don Carlo deixou muito a desejar…

A opção de apresentar a versão da ópera em quatro actos é absolutamente legítima, mas comporta problemas. Desde logo, o espectador menos familiarizado com a obra terá dificuldade em compreender a lógica da trama, dado que o acto de Fontainebleau se encontra ausente. Há muito anos, em conversa com a mítica Karita Mattila, percebi a que ponto a ausência em questão era comprometedora. Aliás, Mattila recusava liminarmente interpretar a versão mais curta da ópera, ela que foi a maior Elisabeth de Valois dos últimos vinte anos – vide Don Carlos, sob a direcção de Pappano.

Começou mal a coisa, pois.

A encenação de S. Langridge roça o desastre, sobretudo pela transposição da trama para a época presente, mal conseguida, incoerente e trôpega. O jogo de ténis é absolutamente imbecil e causou embaraço no coro, quase estatelando uma das intérpretes no chão, que tropeçou numa das dezenas de bolas espalhadas pelo palco; lamentável. A gaiola / prisão (onde decorre o acto do auto-da-fé) é uma solução desastrosa, dramaticamente, mergulhando a trama no ridículo; inaceitável. Depois, há uma exploração do universo dark, que exaspera. Tudo é lúgubre…

Os cenários são foleiros, contando com detalhes pindéricos – a coroa sem cabeça, o túmulo do imperador, omnipresente, digno de um sem-abrigo, etc.

A direcção de Martin André foi trágica. Pergunto-me se o senhor em questão conhece a voz humana? Sistematicamente, a orquestra – em fortissimo – abafava os solistas, obrigados a berrar e esbracejar, para se fazerem ouvir. Entradas fora de tempo e desacertos, foi mato… Sem subtileza alguma, fomos bombardeados com uma sanfona ensurdecedora. Talvez André opte por mudar de vida! É que há feiras e circos ávidos de animadores musicais deste calibre…

O coro esteve coeso e harmonisos, particularmente inspirado no auto-da-fé.

Os solistas salvaram a honra do convento, com reservas…

Enrico Iori compôs um Filippo equilibrado e digno, austero e sofrido qb. Brilhou no Ella giammai m’ammo, bem acompanhado pelo violoncelo lírico, apesar do enquadramento cénico deplorável: levanta-se da cama, onde se encontra uma cortesã (?), em cuecas (!!!), compõe a fralda da camisa… fiquemos por aqui.

Don Carlo foi interpretado pelo jovial Giancarlo Mansalve. De um modo geral, cumpriu, abrilhantando a prestação com agudos ousados e afoitos. Embora a figura ajude, o jogo cénico torna a sua prestação pouco credível. Ladeou-o o Roderigo do grego Dimitri Platanias, também ele cumpridor e brioso, de voz lírica e melodiosa.

Ayk Martirossian propôs um Grand Inquisitor convencional, de voz baça e volume limitado. A pouca credibilidade da caracterização foi reforçada pela cadeira de rodas imposta pela imbecil encenação…

A Princesa Eboli foi interpretada pelo meio-soprano Enkelejda Shkosa, actriz versátil e generosa. Começou muito mal – Canzone del Velo -, com estridência e dificuldades na coloratura, terminando com um O Don Fatale correcto e digno. A voz apresenta limitações evidentes e sinais de desgaste, mas enfim…

Termino com a grande decepção da récita, a Elisabeta de La Matos.
A voz de Elisabete Matos é – no momento presente – enorme, volumosa e robusta. Estará em casa no território spinto, mas no lírico, a conversa é outra. Pagaria para não assistir a uma Amelia (Boccanegra) sua… Pago para não assistir a outra Elisabeta!

O vibrato da intérprete – omnipresente – incomodou-me muitíssimo, comprometendo a composição do personagem. Elisabeta é uma mulher digníssima, nobre e imaculada. A voz quer-se límpida e graciosa. Matos apresenta-nos uma Elisabete nos antípodas da concepção verdiana, terminando com um Tu che le vanità banalíssimo, sem ponta de elegância.

As boas-línguas disseram-me que a senhora se encontrava a recuperar de uma constipação. Pois seja, mas da decepção não nos livrou!


Pergunto-me se melhores dias virão, liricamente falando, para o nosso Teatro Nacional?

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(2,5/5)

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Em breve, liricamente falando...






A semana que se avizinha conta com dois acontecimentos musicais que não perderei: Don Carlo, no São Carlos (não o piso desde que o sumo incompetente Damann se apoderou dele) e O Castelo do Barba Azul, no Ministério da Cultura.

Anna Bolena – Met Opera House, récita de 15 de Outubro de 2011 (via F. C. Gulbenkian)



(Anna Netrebko, como protagonista de Anna Bolena: Met Opera House, Outubro de 2011)



Anna Bolena (1830) foi a ópera com que o jovem Donizetti - então com 33 anos - alcançou a glória. A mesma obra, juntamente com Maria Stuarda (de 1835) e Roberto Devereux (1837), forma a ilustre trilogia Tudor, uma das mais célebres da lírica.

Trata-se de uma ópera tipicamente bel cantista, com longas frases, ricamente ornamentadas e elaboradas, que demandam intérpretes ágeis, resistentes e detentores de uma veia lírica apuradíssima. Dada a grande exigência desta peça – sobretudo no tocante ao papel titular -, apenas em inícios do século XX assistimos à sua ressurreição. Não será por mero acaso que o Met jamais estreou esta obra!

De entre as mais distintas protagonistas de Anna Bolena, destacam-se Maria Callas – que a interpretou numa extraordinária produção, no alla Scala (1957), a partir de uma encenação luxuosíssima de Visconti -, Leyla Gencer e Joan Sutherland. Beverly Sills distinguiu-se de igual modo neste papel, tendo cometido a proeza de interpretar os restantes papeis titulares das duas outras obras que compõem a trilogia Tudor. Os mais interessados leitores encontrarão a trilogia encabeçada por Sills à venda… nas lojas on-line!


O libreto de Felice Romani sugere uma protagonista profundamente narcísica, absolutamente centrada na defesa da sua honra e orgulho. Anna não ama Henrique, nem de perto, nem de longe. Aliás, não sei se terá, alguma vez, amado alguém… Henrique constitui um apêndice fálico, que abre à Jovem Bolena o acesso à glória e poder. Para condimentar a protagonista, o libretista decide dotá-la de uma cena de loucura. As mad scenes eram imperativas, à época – vide I Puritani, Lucia di Lammermoor, Dinorah, Hamlet, etc.

O labor do encenador McVicar – profundamente simbólico – assenta numa concepção hiper-realista, elegante e faustosa (embora aqui e ali frugal) da obra. Os cenários (Jones) são imensos e grandiosos, de uma austeridade assinalável. No guarda-roupa (Tiramani) o luxo e exuberância transcendem-se.

McVicar joga, sobretudo, com as tonalidades, que definem estados de espírito e dimensões semi-ocultas dos personagens: cinza e preto traduzem o lúgubre e trágico; o leito real da rainha, escarlate, muito vivo, sugere uma Bolena algo pecaminosa…

No plano artístico e vocal, indubitavelmente, Anna Netrebko é magnânime, regina assoluta da récita. Compõe uma Bolena altaneira, orgulhosa, aterrorizada pela humilhação e vergonha. A voz, apoteótica, encontra-se absolutamente dominada. Pontualmente, haverá quebras no volume, mas o protagonismo e disciplina arrebatam. Sem sinais de fadiga, olimpicamente, Netrebko enforma em pathos as longas frases, iluminando as ornamentações assassinas da partitura. Termina, majestosa, com uma bravura memorável… Com 10 kg a menos, teria o universo a seus pés!

O restante elenco, apesar do elevado nível, apresenta fragilidades: Gubanova (Giovanna) é convincente, mas muito feia e tem um timbre grosseiro, Abdrazakov apresenta graves hesitantes, apesar da envergadura da sua caracterização, e Costello revela certa inconsistência na composição dramática, torneando com relativa habilidade as dificuldades técnicas que vai enfrentando.

Armiliato dirge rotineiramente a orquestra do Met, sem brilho particular.
Por Annuska, above all!

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(4/5)

domingo, 9 de outubro de 2011

Amadeus, Teatro Nacional D. Maria II: o fantasma homossexual, psicanaliticamente fala(n)do



A peça Amadeus (Schaffer, 1979) ganhou um inusitado folgo quando Milos Forman a adaptou ao cinema, em 1984. O maior feito da obra de Forman foi ecoar o génio de Wolfgang Amadeus, particularmente a lírica mozarteana, que se funde com a harmonia e perfeição.

O texto de Schaffer é bem conhecido de quase todos, propondo uma inverosímil relação entre Salieri e Mozart. A verdade histórica revela-nos um respeito mútuo de cada um dos criadores pela obra do outro. Aliás, para que dúvidas não restem, Bartoli, a Divulgadora, editou em meados da década um registo integralmente consagrado a Salieri, cuja lírica contém um interesse imenso.

Por sua vez, o texto de Shaffer inspirou-se em Pushkin (1799 – 1837) – Mozart e Salieri (1830) -, que serviu de base à ópera homónima, composta por Rimsi-Korsakov, levada à cena em Moscovo, em 1898.

No âmbito da actual temporada do Teatro Nacional D. Maria II, Diogo Infante – director artístico da companhia – leva à cena a peça, encenada por Tim Carroll.

O trabalho de Carroll contém algumas subtilezas interessantes, particularmente por enfatizar uma aspecto central da relação entre Salieri e Mozart. Dir-se-ia que o encenador torna consciente um fantasma homossexual que perpassa toda a obra. Salieri, d’après Schaffer e Carroll, é um perverso, que nutre por Mozart um amor e fascínio indisfarçáveis. Por via de uma parcialmente eficaz sublimação, a paixão de Salieri desloca-se para a produção artística mozarteana, que o compositor italiano venera, como ninguém. É também por acção do deslocamento que o Kappel Meister da corte austríaca procura materializar o amor por Wolfgang Amadeus, nomeadamente quando procura investir carnalmente sobre Constanze, esposa de Mozart. Uma vez mais, verdadeiramente, é Mozart que Salieri deseja!

A relação entre os dois homens reenvia, inevitavelmente, ao sado-masoquismo: Salieri, doentiamente invejoso, humilha e subjuga Mozart, destruindo-o, enquanto Mozart se submete, em nome da sobrevivência e fama. Não há parelha mais perfeita, no mais patológico dos sentidos.

O leitor mais atento verá, também em Shakespeare (Otelo), uma outra variante do amor homossexual perverso, que Iago tão bem representa. Iago ama e deseja Otelo, camuflando o amor com ódio.

Voltando ao labor de Carroll, creio que a explicitação do amor intolerável de Salieri transcende a parelha. Se assim não é, por que raio dota Tim Carroll todos os personagens masculinos de uma histriónica bichice? A que se devem os indisfarçáveis trejeitos e maneirismos da entourage masculina do imperador? Bien joué! Chapeau!!

No tocante aos intérpretes, sublinho a consistência da composição de Ivo Canelas (Mozart), que revela uma sólida progressão dramática. Menos feliz no acto I, onde exibe um histrionismo algo desajeitado, triunfa no derradeiro acto, particularmente no investimento que faz da corrosão. Quase dilacerante.

Diogo Infante (Salieri) demonstra grande eficácia e mérito na velhice e decadência da sua personagem. Inunda o Salieri novo de triunfo, inveja, perversão e destrutividade, com mérito. Contudo, não resiste aos tiques de vedeta, que se misturam com a desprezível tradição de certo D. Maria II: voz muito colocada, tom excessivamente declamado. A plateia rende-se aos seus encantos. Assim seria, também, caso o trabalho do talentoso Infante fosse uma merda...

O restante elenco cumpre, com brio, e de forma amplamente homogénea.

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(3,5/5)