Este Don Carlo poderia ter marcado a minha reconciliação com o São Carlos, que deixei de frequentar na sequência do escândalo protagonizado pela dupla Pires de Lima / Vieira de Carvalho, que se consubstanciou na nomeação do incompetentíssimo Chrostopher Dammann para a direcção do teatro. Foram anos de ausência justificada.
Pois bem, a verdade é que a dita reconciliação terá de sofrer mais um adiamento, posto que este Don Carlo deixou muito a desejar…
A opção de apresentar a versão da ópera em quatro actos é absolutamente legítima, mas comporta problemas. Desde logo, o espectador menos familiarizado com a obra terá dificuldade em compreender a lógica da trama, dado que o acto de Fontainebleau se encontra ausente. Há muito anos, em conversa com a mítica Karita Mattila, percebi a que ponto a ausência em questão era comprometedora. Aliás, Mattila recusava liminarmente interpretar a versão mais curta da ópera, ela que foi a maior Elisabeth de Valois dos últimos vinte anos – vide Don Carlos, sob a direcção de Pappano.
Começou mal a coisa, pois.
A encenação de S. Langridge roça o desastre, sobretudo pela transposição da trama para a época presente, mal conseguida, incoerente e trôpega. O jogo de ténis é absolutamente imbecil e causou embaraço no coro, quase estatelando uma das intérpretes no chão, que tropeçou numa das dezenas de bolas espalhadas pelo palco; lamentável. A gaiola / prisão (onde decorre o acto do auto-da-fé) é uma solução desastrosa, dramaticamente, mergulhando a trama no ridículo; inaceitável. Depois, há uma exploração do universo dark, que exaspera. Tudo é lúgubre…
Os cenários são foleiros, contando com detalhes pindéricos – a coroa sem cabeça, o túmulo do imperador, omnipresente, digno de um sem-abrigo, etc.
A direcção de Martin André foi trágica. Pergunto-me se o senhor em questão conhece a voz humana? Sistematicamente, a orquestra – em fortissimo – abafava os solistas, obrigados a berrar e esbracejar, para se fazerem ouvir. Entradas fora de tempo e desacertos, foi mato… Sem subtileza alguma, fomos bombardeados com uma sanfona ensurdecedora. Talvez André opte por mudar de vida! É que há feiras e circos ávidos de animadores musicais deste calibre…
O coro esteve coeso e harmonisos, particularmente inspirado no auto-da-fé.
Os solistas salvaram a honra do convento, com reservas…
Enrico Iori compôs um Filippo equilibrado e digno, austero e sofrido qb. Brilhou no Ella giammai m’ammo, bem acompanhado pelo violoncelo lírico, apesar do enquadramento cénico deplorável: levanta-se da cama, onde se encontra uma cortesã (?), em cuecas (!!!), compõe a fralda da camisa… fiquemos por aqui.
Don Carlo foi interpretado pelo jovial Giancarlo Mansalve. De um modo geral, cumpriu, abrilhantando a prestação com agudos ousados e afoitos. Embora a figura ajude, o jogo cénico torna a sua prestação pouco credível. Ladeou-o o Roderigo do grego Dimitri Platanias, também ele cumpridor e brioso, de voz lírica e melodiosa.
Ayk Martirossian propôs um Grand Inquisitor convencional, de voz baça e volume limitado. A pouca credibilidade da caracterização foi reforçada pela cadeira de rodas imposta pela imbecil encenação…
A Princesa Eboli foi interpretada pelo meio-soprano Enkelejda Shkosa, actriz versátil e generosa. Começou muito mal – Canzone del Velo -, com estridência e dificuldades na coloratura, terminando com um O Don Fatale correcto e digno. A voz apresenta limitações evidentes e sinais de desgaste, mas enfim…
Termino com a grande decepção da récita, a Elisabeta de La Matos.
A voz de Elisabete Matos é – no momento presente – enorme, volumosa e robusta. Estará em casa no território spinto, mas no lírico, a conversa é outra. Pagaria para não assistir a uma Amelia (Boccanegra) sua… Pago para não assistir a outra Elisabeta!
O vibrato da intérprete – omnipresente – incomodou-me muitíssimo, comprometendo a composição do personagem. Elisabeta é uma mulher digníssima, nobre e imaculada. A voz quer-se límpida e graciosa. Matos apresenta-nos uma Elisabete nos antípodas da concepção verdiana, terminando com um Tu che le vanità banalíssimo, sem ponta de elegância.
As boas-línguas disseram-me que a senhora se encontrava a recuperar de uma constipação. Pois seja, mas da decepção não nos livrou!
Pergunto-me se melhores dias virão, liricamente falando, para o nosso Teatro Nacional?
______
* * * * *
(2,5/5)
Pois bem, a verdade é que a dita reconciliação terá de sofrer mais um adiamento, posto que este Don Carlo deixou muito a desejar…
A opção de apresentar a versão da ópera em quatro actos é absolutamente legítima, mas comporta problemas. Desde logo, o espectador menos familiarizado com a obra terá dificuldade em compreender a lógica da trama, dado que o acto de Fontainebleau se encontra ausente. Há muito anos, em conversa com a mítica Karita Mattila, percebi a que ponto a ausência em questão era comprometedora. Aliás, Mattila recusava liminarmente interpretar a versão mais curta da ópera, ela que foi a maior Elisabeth de Valois dos últimos vinte anos – vide Don Carlos, sob a direcção de Pappano.
Começou mal a coisa, pois.
A encenação de S. Langridge roça o desastre, sobretudo pela transposição da trama para a época presente, mal conseguida, incoerente e trôpega. O jogo de ténis é absolutamente imbecil e causou embaraço no coro, quase estatelando uma das intérpretes no chão, que tropeçou numa das dezenas de bolas espalhadas pelo palco; lamentável. A gaiola / prisão (onde decorre o acto do auto-da-fé) é uma solução desastrosa, dramaticamente, mergulhando a trama no ridículo; inaceitável. Depois, há uma exploração do universo dark, que exaspera. Tudo é lúgubre…
Os cenários são foleiros, contando com detalhes pindéricos – a coroa sem cabeça, o túmulo do imperador, omnipresente, digno de um sem-abrigo, etc.
A direcção de Martin André foi trágica. Pergunto-me se o senhor em questão conhece a voz humana? Sistematicamente, a orquestra – em fortissimo – abafava os solistas, obrigados a berrar e esbracejar, para se fazerem ouvir. Entradas fora de tempo e desacertos, foi mato… Sem subtileza alguma, fomos bombardeados com uma sanfona ensurdecedora. Talvez André opte por mudar de vida! É que há feiras e circos ávidos de animadores musicais deste calibre…
O coro esteve coeso e harmonisos, particularmente inspirado no auto-da-fé.
Os solistas salvaram a honra do convento, com reservas…
Enrico Iori compôs um Filippo equilibrado e digno, austero e sofrido qb. Brilhou no Ella giammai m’ammo, bem acompanhado pelo violoncelo lírico, apesar do enquadramento cénico deplorável: levanta-se da cama, onde se encontra uma cortesã (?), em cuecas (!!!), compõe a fralda da camisa… fiquemos por aqui.
Don Carlo foi interpretado pelo jovial Giancarlo Mansalve. De um modo geral, cumpriu, abrilhantando a prestação com agudos ousados e afoitos. Embora a figura ajude, o jogo cénico torna a sua prestação pouco credível. Ladeou-o o Roderigo do grego Dimitri Platanias, também ele cumpridor e brioso, de voz lírica e melodiosa.
Ayk Martirossian propôs um Grand Inquisitor convencional, de voz baça e volume limitado. A pouca credibilidade da caracterização foi reforçada pela cadeira de rodas imposta pela imbecil encenação…
A Princesa Eboli foi interpretada pelo meio-soprano Enkelejda Shkosa, actriz versátil e generosa. Começou muito mal – Canzone del Velo -, com estridência e dificuldades na coloratura, terminando com um O Don Fatale correcto e digno. A voz apresenta limitações evidentes e sinais de desgaste, mas enfim…
Termino com a grande decepção da récita, a Elisabeta de La Matos.
A voz de Elisabete Matos é – no momento presente – enorme, volumosa e robusta. Estará em casa no território spinto, mas no lírico, a conversa é outra. Pagaria para não assistir a uma Amelia (Boccanegra) sua… Pago para não assistir a outra Elisabeta!
O vibrato da intérprete – omnipresente – incomodou-me muitíssimo, comprometendo a composição do personagem. Elisabeta é uma mulher digníssima, nobre e imaculada. A voz quer-se límpida e graciosa. Matos apresenta-nos uma Elisabete nos antípodas da concepção verdiana, terminando com um Tu che le vanità banalíssimo, sem ponta de elegância.
As boas-línguas disseram-me que a senhora se encontrava a recuperar de uma constipação. Pois seja, mas da decepção não nos livrou!
Pergunto-me se melhores dias virão, liricamente falando, para o nosso Teatro Nacional?
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(2,5/5)
Ui... Elisabete Matos com vibrato?!? Não suporto o vibrato excessivo, dá-me conta dos nervos!
ResponderEliminarCaro Dissoluto,
ResponderEliminarNa generalidade concordo consigo quanto à sua apreciação desta Récita do Don Carlo de Verdi, à qual eu também assisti.
Quanto a Enkelejda Shkosa, a meio soprano Eboli, não a achei desgastada nem estridente. Achei-a sim no ponto pérola da sua voz, embora revele limites no seu campo mais agudo que, apesar de bem postado e próprio da cor de uma mezzo, revelou-se de projecção/duração muito curta.
Não podia estar mais em desacordo consigo quanto a Elisabete Matos. O seu vibrato, que agora se revela mais largo, não me incomodou. Bem até pelo contrário. Chego à conclusão que La Matos chegou ao ponto perfeito de madureza de uma Lírico-spinto. Os seus agudos em fortíssimo fizerem-me lembrar La Gwyneth Jones.
Eu sei… La Jones apresentava uma voz muito instável, a partir de certa altura com um vibrato muito largo. Tentava compensar este problema técnico, que foi assaltando progressivamente a sua voz, com talento dramático em palco e os resultados estiveram à vista; um final de carreira brilhantíssimo… e não sei se ainda hoje frequenta os palcos, obviamente em papéis secundários. O que daria actualmente uma sua Klytemnestra na Elektra de Richard Strauss… ;-))
La Matos não é,presentemente, La Jones… mas para lá caminha. Com todas as suas virtudes e com todos os seus defeitos.
Obviamente não possui (ainda?) o volume de voz que a galesa La Jones detinha. Presenciei-a (La Jones) duas vezes em Recital: em Coimbra no Teatro Gil Vicente e no nosso S. Carlos nos idos da década de 90, já no fim da sua carreira, portanto.
Também lhe digo que não me pareceu que La Matos estivesse a sofrer de alguma indisposição. O que me disse La Matos, quando fui à minha habitual caça aos autógrafos :-), foi que já tinha sofrido problemas vocais este ano, daí a sua anulação das récitas do Nabucco (?... Ou seria do Macbeth?...) com Muti em Roma, mas que agora já estava tudo bem, graças a Deus. Desejemos-lhe todos a maior saúde vocal do mundo e as maiores glórias para a sua Abigaille do Nabucco, que cantará já no próximo dia 17 do corrente mês, at the Met :-)
Termino pedindo-lhe desculpas por este Post já um bocadinho atrasado, cumprimentando cordialmente a sua esposa, que nos brindou também com a sua presença nesta última récita do verdiano Don Carlo e… beijões ao crianço :-D :-D
See ya.
LG
Lg,
ResponderEliminarNão me digas que a sra Matos não te decepcionou! Por amor de Deus!!!
Foram ambas as com Muti participaçoes canceladas.
ResponderEliminarO Nabuco em Roma devido a problemas gastricos e o Macbeth em Salzburg devido a falta de tempo para ensaiar.
Caro Dissoluto,
ResponderEliminarNas actuais condições em que trabalha o S. Carlos, Madame Matos não nos deu Elisabetta com desprimor. Bem até pelo contrário, fez aquilo que pode dentro das circunstâncias calamitosas em que aquela instituição está.
Atenção: La Matos NÃO É VOCALMENTE NEM FISICAMENTE La Netrebko.
E digo isto não diminuindo o facto do Dissoluto ser ( e muito!!... coitada da Mattila ultimamente… ;-D ) fã de Netrebko. Já disse num outro Blog que Netrebko, Schrott (seu husband), Garanca, D`Arcangelo estão na hora perfeita de se abalançarem ao verdiano Don Carlo.
Mande sempre, Dissoluto.
Atenciosamente,
LG