(Anna Netrebko, como Nemorina, em Don Pasquale - Met Opera House, Novembro de 2010)
O fascínio da opera buffa belcantista reside num ponto central, incontornável: a sagacidade triunfa sobre a linhagem e força bruta. Aliás, a tradição do final do classicismo – Mozart, em particular – introduziu este aspecto estruturante, apoiando-se, nomeadamente em Beaumarchais. Figaro constitui, assim, o paradigma do novo herói dramático, cuja inteligência triunfa sobre a perversidade aristocrática.
A tradição buffa, belcantista – e não só! -, contém, ainda, outro aspecto muito característico. O derrube do anti-herói – Mustafá, Pasquale, Falstaff, Bartolo, etc. - demanda uma colaboração conjunta de parte das demais personagens que, por força da urdidura e intriga, expõem ao ridículo o senhor. Pelo meio, há identidades truncadas, volte-faces e peripécias mil, movidos por um ritmo frenético, envoltos em momentos de humor singelo, e muito acessível.
Don Pasquale, de Donizetti, que é uma peça lírica buffa – e não uma ópera cómica, como erradamente se diz por aí (a Carmen é, essa sim, uma ópera cómica, com diálogos falados, que intercalam com a árias), reitera a força destas premissas.
A produção luxuosa que o Met difundiu sábado passado contou com a assinatura de Otto Schenk, encenador austríaco que a sala nova-iorquina muito respeita. Schenk é um hiper-realista, com um traço megalómano. Relembra Zeffirelli, embora seja menos dado ao mau gosto. Algumas das suas encenações mantêm-se no activo. Há para todos os gostos: um Parsifal que bordeja o sublime (que me fascinou, perto de 10 anos após a estreia), um Os Mestres Cantores de um realismo caduco e empoeirado, um Der Ring kitsch, kitsch (doravante substituído pela montagem de Lepage)…
No caso de Don Pasquale, o encenador seguiu a lógica de sempre, ditada pelo realismo faustoso e acelerado, mas altamente coerente. Tudo é imenso, até a decadência do protagonista, caracterizada com particular finura: criados descuidados, Pasquale emporcalhado e seboso, palácio e entourage decrépitos. Nos antípodas, emergem as esbeltas figuras dos sagazes Nemorina, Ernesto e Malatesta: Netrebko lasciva e libidinosa, Polenzani pueril e apaixonado e Kwiecien dandy malandro e astucioso. Cada um en su sitio, como manda a peça.
Por vezes, o retrato fiel d’a coisa não é sinónimo de vistas curtas! É que os rasgos ultra-criativos, com frequência, roçam o delírio… Realismo assim, sim!
Em matéria de prestação interpretativa e vocal, a fasquia esteve à altura da mise-en-scène: soberba!
Netrebko apenas encerra uma fragilidade: 5kg a mais! Há fogo, lava e vísceras na sua graciosa Nemorina, ora dócil e terna, ora astuta e ardilosa. A voz está deslumbrantemente aberta e colorida (apesar de estruturalmente escura), segura e ágil, como se pretende. A figura… é o que se sabe: um monumento.
Polenzani mantém o cristal que o celebrizou: um timbre imaculado e límpido, com uma ousadia pirotécnica magistral. A personagem presta-se a menor riqueza expressiva que as demais, tendo o tenor explorado – e bem – a dimensão lírica e apaixonada da personagem. Há uns anos, no Met, vi-o como Don Ottavio e adivinhei-lhe um futuro promissor. Não me enganei!
Kwiecien – cujo Enrico impressionou tudo e todos – impregnou Malatesta de elegância e malícia. Quando foi necessário – por ocasião do célebre e implacável dueto com Del Carlo, verdadeira prova de fogo belcantista -, exibiu com mestria a sua agilidade e disciplina.
John Del Carlo, vero basso buffo, foi Pasquale até ao âmago: fanfarrão, atontalhado e deliciosamente ridículo. O timbre não será dos mais belos, mas a riqueza expressiva da sua criatura… Pasquale será o equivalente donizzettiano de Falstaff. Pago para ver o seu Verdi derradeiro, genialmente buffo!
Encerro com uma referência a Levine & The Met Orchestra. Apreciei o ritmo frenético impresso à leitura orquestral, mas James Levine é pouco subtil e refinado. A orquestra cumpriu com brilho, mas faltou-lhe picante e malícia.
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(4,5/5)
O conceito de anti-herói tem mais que ver com o de aventureiro, cujo modelo supremo na nossa literatura é Fernão Mendes Pinto e o Veloso, personagem d'Os Lusíadas e que está presente no episódio que precede a mais sublimas linhas escritas na nossa língua: o episódio do Adamastor. O anti-herói é capaz de cometer acções negativas, como, por exemplo, roubar e mentir, impensáveis num herói, puro, generoso, íntegro como o são o modelo Aquiles e na tradição germânica Siegfried.
ResponderEliminarO baixo buffo italiano já nos aparece na escola italiana nas óperas de Cimarosa e Paisiello, imunes a influências mozartianas. Será mais provável Mozart ter bebido na escola italiana, tão popular então, e não Rossini a Mozart.
O Don Pasquale foi uma das primeiras óperas que vi e por sinal no São Carlos. No elenco figurava o grande baixo italianao Italo Tajo como Don Pasquale e o Ernesto era interpretado por Alfredo Kraus. Considero a ópera a melhor de Donizetti e dela tenho a gravação onde o baixo buffo é um modelo: Fernando Corena. No mercado ultimamente saiu uma versão dvd com a Patricia Ciofi. É bastante desequilibrada, principalmente pela prestação do tenor, personagem detentora de linhas musicais belíssimas, o que é uma pena.
Esperei até à meia-noite e vinte nada.
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