domingo, 5 de julho de 2009

Gata em Telhado de Zinco Quente - uma (parcial) leitura psicanalítica

Em psicanalês – termo criado por Carlos Amaral Dias, meu mestre (entre muitas outras coisas...) -, é hábito dizer-se que a verdade cura.

Evidentemente, ao falar em verdade, referimo-nos à verdade subjectiva, a única que se conhece, em psicanálise.

Uma (psic)análise não é mais que o confronto do sujeito com a verdade. Aceitar a sua verdade, em pleno, tolerar a brutalidade da mesma, suportar a dor que lhe subjaz, eis a primeira premissa da cura analítica. Doravante, através do complexo trabalho baseado na relação transferencial, a verdade subjectiva abre-se à transformação e cambia. Contrariamente à verdade objectiva, a subjectiva muda, transforma-se, permitindo que o sujeito refaça percursos, trilhe novos caminhos, escapando, assim, à tremenda força da compulsão à repetição.


(cartaz de Gata em Telhado de Zinco Quente)

Em Gata em Telhado de Zinco Quente, uma vez mais, Tennessee Williams – via Richard Brooks – sublinha o peso e importância capital d'A verdade na vida psíquica do indivíduo.

A verdade de Brick, quando emerge, tornando-se consciente, transforma o curso da personagem. O sintoma desaparece, então.

Na génese da problemática de Brick está a complexa relação / identificação com o paterno.

Brick é um homem castrado, simbolicamente: sem trabalho, sem pujança e sem desejo. A sua virilidade é trôpega, senão coxa, amparada por uma muleta. O calcanhar fracturado – e bem assim a sua dependência do álcool - constituem a prova insofismável de uma masculinidade tosca e mal-amanhada.

No filme – tal como na peça – (bem como na psicanálise), a resolução da conflitualidade constitutiva do sofrimento de Brick implica um revisitar das profundezas: o ajuste de contas com o pai dá-se nos confins de uma funda e imensa cave, pejada de memórias familiares.

Brick, pela primeira vez na vida, ousa enfrentar o pai, assumindo a sua ambivalência: reivindica o seu amor, enquanto expressa de modo brutal a sua raiva e ódio. O pai autocrata e omnipotente, preso a um narcisismo frágil, revela então o seu imenso amor pelo filho predilecto.

A magnífica ousadia de Brick – prova da internalização e afirmação do phallus – põe termo a uma lógica de submissão e passividade.

Aliás, o fantasma homossexual que paira sobre a personagem interpretada por Paul Newman decorre de uma identidade masculina frágil, secundária a uma quase impossível identificação ao pai viril. Como disse, o abandono do masoquismo submisso e passivo, motivado pela afirmação e ousadia fálicas, ditam a mudança.

Doravante – leia-se, após a resolução do conflito identificatório -, Brick assume a sua condição plena de homem: activo e desejante, dissipa os fantasmas de outrora, abandonando as muletas do passado.


Um dos mais belos homens do mundo, por fim, ama sem pudor uma das mais belas mulheres do mundo: Brick e Maggie, ossia Newman e Taylor - inequívocos arquétipos da beleza humana -, afirmam-se em Gata em Telhado de Zinco Quente pela força e vitalidade teatrais, onde se mescla o poder do afecto e a brutalidade do conflito.

Gata em Telhado de Zinco Quente é uma obra singularíssima, pela vitalidade psíquica que a mobiliza e norteia e pelo inusitado sentido dramático que comporta.


(Brick e Maggie - ossia Newman e Taylor - em Gata em Telhado de Zinco Quente)

Um dos mais belos e violentos filmes e – porventura – o mais teatral.
E quem pensa que a natureza humana é pacífica e serena, ou é ignorante – desconhecendo o poder construtivo do conflito -, ou nunca leu Tennessee Williams...

Para ler e rever - a peça e o filme - a cada cinco anos, dos trinta em diante.
A verdade cura. Sem sombra de dúvida...
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(6/5)

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