Em Quem tem medo de Virgínia Wolf?, Mike Nichols – a partir da peça homónima de Edward Albee – ilustra o sadomasoquismo, no contexto das relações de casal, na sua expressão mais destrutiva e patológica.
Martha (Elisabeth Taylor) e George (Richard Burton) - e respectivos alter ego, ossia Honey (Sandy Dennis) e Nick (George Segal) – mantêm e nutrem vínculos primordialmente subsidiários do ódio: insultam-se, agridem-se, ferem-se, infligindo-se mutuamente humilhações constantes.
Este estilo relacional, monolítico, imensamente destrutivo, visa a aniquilação psíquica do outro. O gozo radica na destruição, e no castigo sofrido.
Em Jenufa (Janacek), o estilo sadomasoquista reveste-se de um carácter ainda mais maligno e radical.
A jovem e bela Jenufa engravida do estouvado Steva. A gravidez é mantida na clandestinidade, com o auxílio da mãe de Jenufa, Kostelnicka.
Kostelnicka, ferida de morte no seu narcisismo – a gravidez da filha macula-lhe(s) a honra -, recorre ao assassínio, como forma de restauração da dignidade manchada: mata brutalmente o próprio neto, assim fazendo desaparecer a marca do pecado e desonra.
Sublinho: o móbil do abjecto e insano gesto de Kostelnicka é, apenas e só, a ferida narcísica da própria. A criança conspurca-lhe o bom-nome e honra. A defesa da dignidade de Jenufa constitui um trôpego pretexto.
ps assisti há uns anos a uma inolvidável récita de Jenufa, apoiada nesta estupenda e justamente famosa encenação de Olivier Tambosi (foi criada originalmente para a Hamburgische Staatsoper, tendo passado por Covent Garden, além do Met), em Nova Iorque, no Met. À época, foi a Kostelnicka de Anja Silija quem mais me marcou. No caso desta Jenufa, indubitavelmente, Eva Marton constitui a suma glória da récita, compondo uma Kostelnicka inultrapassável: infinitamente maligna e crua, de uma brutalidade animalesca, para além do concebível. O vibrato selvagem, no caso desta personagem, não é defeito, é feitio!
Sobre a Jenufa, ópera que conheci tarde (talvez há uma dúzia de anos), ela foi para mim uma revelação, ouvindo a célebre gravação do Mackerras vezes sem conta. Depois vi-a em Hong Kong, onde tinha uma equipe totalmente checa. Foi de destacar a Kostelnika da Eva Urbanova. Belo espectáculo!
ResponderEliminarConvém lembrar que a este infanticídio não é estranho o facto da Kostelnika ser mãe adoptiva da Jenufa. Os parâmetros com que um autor define uma personagem tem sempre uma razão de ser. Talvez se fosse sangue do seu sangue as coisas fossem diferentes.
Só mais uma coisa para informação de todos os que partilham este espaço. Não é segredo para ninguém que vivo em Pequim e gostaria de informar quem me lê que as autoridades chineses decidiram há uns dias bloquear todos os blogues assim como já há bastante tempo o fez com o Youtube. Falta menos de um mês para os 20 anos dos acontecimentos de Tiananmem e as autoridades pensam que desta maneira as pessoas não trocam ideias, mesmo de ópera :} Claro que neste momento, graças um espertíssimo português da área de informática que aqui está a fazer um estágio, eu pude furar esta censura no mínimo ridícula.
Raul
Abençoado espertíssimo português da área de informática.
ResponderEliminarMaria Helena
Raul,
ResponderEliminarA realidade supera e muito a ficção!
Poder partilhar e apreciar o conteúdo dos seus "post" e saber que vivencia uma realidade tão mas tão diferente da nossa e saber que há sempre quem resista e consiga libertar-se das algemas...
Bem haja o espertíssimo português da área de informática!!!
Gloria
Caro Raul,
ResponderEliminarque os seus "posts" se multipliquem ridicularizando, ainda mais, as peculiaridades do regime chinês.
Glória,
ResponderEliminarObrigado pelas suas palavras. Entre a primeira vez que vim aqui e hoje passaram 23 anos. Nessa altura estávamos, podemos dizer, como noutro planeta. Hoje quem goste, como eu, de cá estar vive muito bem aqui. A mudança é lenta porque tudo pesa mais de quatro mil anos de cultura. Temos de ser pacientes, coisa em que eles são mestres, e esperar. Digo-lhe sinceramente que nunca senti as "algemas", porque, e isso aprendi com a Vida, todos os sistemas, por mais fechados que sejam, têm sempre fissuras que nós aproveitamos sempre em nosso proveito. Mas tem toda a razão quando sugere que estas coisas "chateam". Mas que fazer?
Raul
Raul,
ResponderEliminarObrigada pelo seu testemunho
e lição de vida.
É verdade que não há sistemas perfeitos, e têm sempre aquilo a que apelida de "fissuras", e que há sempre que se ser "criativo" para se dar a volta, mas também acredito e sei que nem todos têm tanta sorte e o exemplo máximo é o
episódio de má memória dos já
20(!) anos de Tiananmen.
Espero que a paciência de Chinês dê uma capacidade frutuosa de resistir e de mudar o que deve ser mudado nessa fabulosa e milenar sociedade.
Eu sou,desde pequena,fascinada pelo Oriente e seus grandiosos pensadores.
Muito particularmente pela China.
Saudações,
Gloria
Glória,
ResponderEliminarSó para terminar e para quem é fascinada pelo Oriente.
Disse-me uma vez um chinês muito culto que na Ásia só há duas culturas, a indiana e a chinesa, as outras são a mistura de ambas. Outro, mas desta vez não era chinês, mas era culto, disse-me que desde os Ming a cultura chinesa entrou em decadência e que a sua originalidade se transferiu para o Japão, daí a sua excepcional capacidade de mudança.
A velha China, eu vejo-a como uma mó de moinho, muito pesada quando rola.
Raul