Vinte anos volvidos sobre a última L’Italiana in Algeri, em Lisboa, no São Carlos, ei-la de novo em cena, triunfal.
Rossini será, porventura, o mais maniforme dos compositores de música lírica de todos os tempos. As suas criações demandam uma celeridade radical, sarcasmo, ironia, malícia, a par de graciosidade e inteligência.
O que a lírica buffa mozartiana tem de subtil, tem a rossiana de sagaz, despudorada e libidinosa.
Chez Rossini, tecnicamente, as dificuldades são de maior: G. Rossini é um dos expoentes máximos do belcanto italiano - lado-a-lado com Bellini e Donizetti - (período que, como se sabe, faz do domínio técnico o eixo central da expressão artística), sendo o maior dos buffos desta mesma escola de canto.
Que se saiba, Bellini só compôs opera seria e Donizetti apenas fez algumas incursões buffas, sendo O Elixir do Amor a mais proeminente de todas elas.
Dito isto, abordar a lírica rossiniana - particularmente a buffa - será das maiores ousadias que imaginar se pode, no que à música (dita) erudita concerne.
A talho de foice, devo confessar que a última ópera do compositor de Pesaro a que assisti - justamente em Lisboa, no TNSC - permanece como a mais miserável do meu repertório! Tratou-se de O Turco em Itália, há cerca de três anos.
Uma vergonha inconcebível, sem ponta por onde pegar!
L’Italiana in Algeri, segundo me parece, em termos de composição, nada revela de inovador. Ainda assim - à semelhança de O Barbeiro de Sevilha - faz a apologia da inteligência e sagacidade, que triunfam sobre as convenções e hábitos da tradição. Todos os envolvidos neste conjunto de récitas parecem tê-lo compreendido!
Quanto às leituras politicas e antropológicas do libretto, não me adianto, pois prezo muito a minha cabeça, if you (all) see what I mean ;-)
Pois bem, parti para esta récita com algumas reticências.
O humor não estava de feição, a fadiga era muita e os ecos das récitas - à excepção da opinião favorável de Bernardo Mariano (do DN) - não eram animadores.
Enganei-me redondamente!
D’emblé, gostei da produção, que procurou servir a obra com humildade, sem a abafar.
Do meu ponto de vista, assim é que deve ser!
É bem verdade que as produções europeias (cultoras da erudição) - contrariamente às americanas (hiper-realistas e dadas ao fausto) - se esforçam por subjugar a lírica à criação plástica...
Em jeito de provocação, diria que o grande mérito desta produção reside na dispensa de estudos pós-graduados em metafísica, por parte do espectador!
Rossini escrevia assumidamente para o povo, que pretendia divertir e animar, não procurando educá-lo, no sentido mais livresco e erudito do termo (a ler como fastidioso e chato).
Com efeito, a presente produção, acima de tudo, desenvolveu um trabalho honesto, singelo, despretensioso, e bastante afim com a eficácia.
Nada contendo de particularmente original, a dita produção apostou numa recriação do ambiente da ópera, de forma fiel, sem aberrações nem liberdades excessivas. A encenação sublinhou a agitação, o frenesim, a ironia, o ridículo (sobretudo) e o humor em que decorre a trama e - a meu ver - conseguiu!
Prolixa em cores fortes e quentes, rica em detalhes e ornamentos arabescos, a equipa acentuou o ambiente de câmara - necessariamente buffo - da obra.
Nesta L’Italiana in Algeri, optou-se pela exploração de um único dispositivo cénico, que se metamorfoseou sucessivas vezes, recriando os diversos cenários que a peça convoca.
Com pequenas transformações, o barco - que alude à viagem -, num ápice torna-se em palácio, ou nos aposentos de Isabella, retomando - no final - a sua forma original.
Dir-me-ão não ser uma ideia noval! Concedo, mas que é eficaz, é; indubitavelmente!
Pese embora a grande harmonia reinante, em termos de produção - encenação, cenografia e figurinos -, em minha opinião, o desenho de luzes revelou algumas fragilidades, pouco ou nada contribuindo para a explicitação das nuances da trama. Esperava-se outro tipo de labor.
Se é verdade que as cenas de conjunto - mais feéricas - revelavam uma luminosidade e brilho concordantes, os ambientes recatados em nada foram servidos pelo desenho de luzes, evidentemente ineficaz na construção da intimidade e do recato.
Quanto a intérpretes, numa palavra, vocal e artisticamente, diria que a trupe levou a melhor!
Comecei por lamentar a indisposição de Lorenzo Regazzo (o GRANDE Figaro de Jacobs) - que anulou a sua presença -, para mim o maior argumento em favor desta récita...
Acabei a aclamar o seu substituto (cujo nome me escapa...).
O seu Mustafà era a actualização do basso buffo rossiniano - voz bem matizada e colorida, profunda (embora nem sempre muito bem projectada), com uma riqueza expressiva notável.
Actor cómico de primeira apanha, este Mustafà revelou talento cénico e humor a rodos, fazendo do ridículo - tal como Rossini pretendia - o eixo central da sua construção artística. A seu lado, Raimondi e Ramey - os dois mais recentes Mustafà’s da discografia -, artisticamente, muito teriam a aprender...
Quanto à Isabella de Kate Aldrich... fascinou-me!
É certo que a coloratura podia ser mais brilhante - nem todas podem ser Colbran’s, Supervia’s, Berganza’s ou Bartoli’s...
Na lírica - queiramos ou não - a bravura é um bem em vias de extinção.
Actriz notável e versátil - tão deslumbrante na malícia e no humor, como convincente na heroicidade e lirismo (recorde-se, a este título, a sua magnífica prestação em Pensa alla patria, verdadeira exaltação da italianidade!) -, Aldrich investiu na inteligência e argúcia, as grandes armas de que Rossini dotou a sua personagem (e que lhe permitem triunfar!) - e ainda há quem questione o carácter fálico da inteligência feminina!!!
Some-se a tudo isto uma bela figura - recorda a Larmore (outra grande rossiniana contemporânea), nos tempos áureos - e fica-se com um talento (mais artístico do que vocal, é certo) a seguir!
Do Lindoro de John Osborne, destacaria a ousadia da emissão. Embora não sendo um belcantista puro - falta-lhe disciplina e método -, o intérprete possui uma voz ampla e, aqui e ali, luminosa.
Quanto aos restantes solistas, globalmente, considero que cumpriram com rigor e empenho, sendo de destacar o Taddeo de Paolo Rumetz, actor cómico de talento excepcional, espantosamente vil e sacana.
Apreciei muitíssimo a direcção de Donato Renzetti - viva, ágil e divertida.
Infelizmente, o maestro não faz milagres: a mediocridade dos sopros da OSP é incontornável - em Wagner, Rossini, Verdi...
Alguém me explica por que não se enviam os músicos - dos sopros... - da citada OSP... para a Argélia, a banhos... ou em reciclagem?!
Já agora, enviem-se os senhores do coro - como alguém aqui disse, com imensa graça - para o Holmes Place! Apenas um argumento justifica a exibição de tanta adiposidade: o rídiculo (rossimiano)!
Enfim, depois de uma récita airosa, graciosa e plena de frescura - como a que assisti -, outra coisa não seria de esperar senão uma extraordinária viragem de humor: em clima de euforia, eu e a minha mulher deleitamo-nos com um excelente entrecôte, à la La Brasserie dudit ;-)))
Rossini será, porventura, o mais maniforme dos compositores de música lírica de todos os tempos. As suas criações demandam uma celeridade radical, sarcasmo, ironia, malícia, a par de graciosidade e inteligência.
O que a lírica buffa mozartiana tem de subtil, tem a rossiana de sagaz, despudorada e libidinosa.
Chez Rossini, tecnicamente, as dificuldades são de maior: G. Rossini é um dos expoentes máximos do belcanto italiano - lado-a-lado com Bellini e Donizetti - (período que, como se sabe, faz do domínio técnico o eixo central da expressão artística), sendo o maior dos buffos desta mesma escola de canto.
Que se saiba, Bellini só compôs opera seria e Donizetti apenas fez algumas incursões buffas, sendo O Elixir do Amor a mais proeminente de todas elas.
Dito isto, abordar a lírica rossiniana - particularmente a buffa - será das maiores ousadias que imaginar se pode, no que à música (dita) erudita concerne.
A talho de foice, devo confessar que a última ópera do compositor de Pesaro a que assisti - justamente em Lisboa, no TNSC - permanece como a mais miserável do meu repertório! Tratou-se de O Turco em Itália, há cerca de três anos.
Uma vergonha inconcebível, sem ponta por onde pegar!
L’Italiana in Algeri, segundo me parece, em termos de composição, nada revela de inovador. Ainda assim - à semelhança de O Barbeiro de Sevilha - faz a apologia da inteligência e sagacidade, que triunfam sobre as convenções e hábitos da tradição. Todos os envolvidos neste conjunto de récitas parecem tê-lo compreendido!
Quanto às leituras politicas e antropológicas do libretto, não me adianto, pois prezo muito a minha cabeça, if you (all) see what I mean ;-)
Pois bem, parti para esta récita com algumas reticências.
O humor não estava de feição, a fadiga era muita e os ecos das récitas - à excepção da opinião favorável de Bernardo Mariano (do DN) - não eram animadores.
Enganei-me redondamente!
D’emblé, gostei da produção, que procurou servir a obra com humildade, sem a abafar.
Do meu ponto de vista, assim é que deve ser!
É bem verdade que as produções europeias (cultoras da erudição) - contrariamente às americanas (hiper-realistas e dadas ao fausto) - se esforçam por subjugar a lírica à criação plástica...
Em jeito de provocação, diria que o grande mérito desta produção reside na dispensa de estudos pós-graduados em metafísica, por parte do espectador!
Rossini escrevia assumidamente para o povo, que pretendia divertir e animar, não procurando educá-lo, no sentido mais livresco e erudito do termo (a ler como fastidioso e chato).
Com efeito, a presente produção, acima de tudo, desenvolveu um trabalho honesto, singelo, despretensioso, e bastante afim com a eficácia.
Nada contendo de particularmente original, a dita produção apostou numa recriação do ambiente da ópera, de forma fiel, sem aberrações nem liberdades excessivas. A encenação sublinhou a agitação, o frenesim, a ironia, o ridículo (sobretudo) e o humor em que decorre a trama e - a meu ver - conseguiu!
Prolixa em cores fortes e quentes, rica em detalhes e ornamentos arabescos, a equipa acentuou o ambiente de câmara - necessariamente buffo - da obra.
Nesta L’Italiana in Algeri, optou-se pela exploração de um único dispositivo cénico, que se metamorfoseou sucessivas vezes, recriando os diversos cenários que a peça convoca.
Com pequenas transformações, o barco - que alude à viagem -, num ápice torna-se em palácio, ou nos aposentos de Isabella, retomando - no final - a sua forma original.
Dir-me-ão não ser uma ideia noval! Concedo, mas que é eficaz, é; indubitavelmente!
Pese embora a grande harmonia reinante, em termos de produção - encenação, cenografia e figurinos -, em minha opinião, o desenho de luzes revelou algumas fragilidades, pouco ou nada contribuindo para a explicitação das nuances da trama. Esperava-se outro tipo de labor.
Se é verdade que as cenas de conjunto - mais feéricas - revelavam uma luminosidade e brilho concordantes, os ambientes recatados em nada foram servidos pelo desenho de luzes, evidentemente ineficaz na construção da intimidade e do recato.
Quanto a intérpretes, numa palavra, vocal e artisticamente, diria que a trupe levou a melhor!
Comecei por lamentar a indisposição de Lorenzo Regazzo (o GRANDE Figaro de Jacobs) - que anulou a sua presença -, para mim o maior argumento em favor desta récita...
Acabei a aclamar o seu substituto (cujo nome me escapa...).
O seu Mustafà era a actualização do basso buffo rossiniano - voz bem matizada e colorida, profunda (embora nem sempre muito bem projectada), com uma riqueza expressiva notável.
Actor cómico de primeira apanha, este Mustafà revelou talento cénico e humor a rodos, fazendo do ridículo - tal como Rossini pretendia - o eixo central da sua construção artística. A seu lado, Raimondi e Ramey - os dois mais recentes Mustafà’s da discografia -, artisticamente, muito teriam a aprender...
Quanto à Isabella de Kate Aldrich... fascinou-me!
É certo que a coloratura podia ser mais brilhante - nem todas podem ser Colbran’s, Supervia’s, Berganza’s ou Bartoli’s...
Na lírica - queiramos ou não - a bravura é um bem em vias de extinção.
Actriz notável e versátil - tão deslumbrante na malícia e no humor, como convincente na heroicidade e lirismo (recorde-se, a este título, a sua magnífica prestação em Pensa alla patria, verdadeira exaltação da italianidade!) -, Aldrich investiu na inteligência e argúcia, as grandes armas de que Rossini dotou a sua personagem (e que lhe permitem triunfar!) - e ainda há quem questione o carácter fálico da inteligência feminina!!!
Some-se a tudo isto uma bela figura - recorda a Larmore (outra grande rossiniana contemporânea), nos tempos áureos - e fica-se com um talento (mais artístico do que vocal, é certo) a seguir!
Do Lindoro de John Osborne, destacaria a ousadia da emissão. Embora não sendo um belcantista puro - falta-lhe disciplina e método -, o intérprete possui uma voz ampla e, aqui e ali, luminosa.
Quanto aos restantes solistas, globalmente, considero que cumpriram com rigor e empenho, sendo de destacar o Taddeo de Paolo Rumetz, actor cómico de talento excepcional, espantosamente vil e sacana.
Apreciei muitíssimo a direcção de Donato Renzetti - viva, ágil e divertida.
Infelizmente, o maestro não faz milagres: a mediocridade dos sopros da OSP é incontornável - em Wagner, Rossini, Verdi...
Alguém me explica por que não se enviam os músicos - dos sopros... - da citada OSP... para a Argélia, a banhos... ou em reciclagem?!
Já agora, enviem-se os senhores do coro - como alguém aqui disse, com imensa graça - para o Holmes Place! Apenas um argumento justifica a exibição de tanta adiposidade: o rídiculo (rossimiano)!
Enfim, depois de uma récita airosa, graciosa e plena de frescura - como a que assisti -, outra coisa não seria de esperar senão uma extraordinária viragem de humor: em clima de euforia, eu e a minha mulher deleitamo-nos com um excelente entrecôte, à la La Brasserie dudit ;-)))
Fico contente que tenha gostado. Eu como já disse, não gostei e o 2º elenco não explica tudo. Não tenho conhecimentos que me permitem fazer crítica aos aspectos musicais, mas tirando a 2ª Isabella os outros estiveram bem. A que ouvi tinha dificuldades na coloratura e gritou mesmo os agudos.
ResponderEliminarMas ao contrário de si não gostei da encenação e muito menos dos figurinos. O cenário embora a ideia fosse interessante era horroroso, perturbava a movimentação e abafava os cantores já de si com pouco projecção. Os pobres ou quem não conseguiu bilhetes melhores, e que se sujeitaram à 4ª ordem viram Mustafá sempre de cabeça cortada! Talvez pudesse ser cómico, não sei!
A Italiana que tinha visto há 20 anos arrancou gargalhadas ao S. Carlos, o que não aconteceu nesta.
Caro Xico,
ResponderEliminarA récita a que assisti suscitou gargalhadas intermináveis e ovações!
Deve ser um problema de elencos!!!
Caro João
ResponderEliminarFolgo em saber que também apreciou a Italiana. Continuamos em empatia e com o tempo não perco a esperança de o poder converter também às operas sérias do Rossini.
J. Ildefonso.
João,
ResponderEliminarAcho que tens razão!
(se nos tratamos por tu, porquê tratares-me por você, neste espaço???)
Um abraço
Tens toda a razão João. Peço desculpa é muito idiota e não faz sentido nenhum:-) Acho que tem a ver com o facto de só escrever cartas e documentos profissionais onde tenho obrigatoriamente que usar uma terminologia mais formal.
ResponderEliminarJ. Ildefonso.