quarta-feira, 20 de abril de 2011

Ípsilon, Público & Ópera e Demais Interesses (II)

Eis, na integra, o texto aqui referido:


Uma das mais célebres caricaturas publicadas n'"O António Maria", semanário ilustrado do século XIX dirigido por Rafael Bordalo Pinheiro (1846-1905), mostra uma série de pessoas sentadas a uma comprida mesa (a "Meza do Orçamento"), servidas pelo Zé Povinho, vestido de criado, carregando pratos. Por cima, vários homens esfomeados tentam também comer sem conseguirem lá chegar. O cenário não podia ser mais actual, mas um dos seus elementos mudaria certamente de figura nos nossos dias: se tivesse sido desenhado hoje, o menino gordo sentado à mesa em primeiro plano, personificando o Teatro Nacional de São Carlos, seria antes um menino magrinho com ar subnutrido, às espera de algumas migalhas... A gravura, que data de 22 de Novembro de 1883, coincide com a época em que a gestão do São Carlos passou para as mãos do Governo e mostra várias personagens da vida política, como Fontes Pereira de Melo ou o ministro da Fazenda (Hintze Ribeiro), a darem de comer, à colherada, à figura que representa o teatro.

Esta é uma das 137 caricaturas extraídas da 1ª série d'"O António Maria" que são reproduzidas num novo estudo de Luzia Rocha (n. 1978), ""pera e Caricatura: o Teatro de São Carlos na obra de Rafael Bordalo Pinheiro", publicado em dois volumes pela Colibri em parceria com o Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical da Universidade Nova de Lisboa. A sátira política e social exercida pelo desenhador, ceramista e jornalista é bem conhecida, mas Bordalo era também um excelente crítico e cronista de espectáculos. "Os seus desenhos são muito ricos em informações sobre a vida musical e teatral, mostram como era a ópera, quem a fazia, como funcionava, as relações com o empresário, os maestros, o repertório, as cenografias (incluindo as criações do prestigiado pintor e cenógrafo italiano Luigi Manini), os críticos, o público", explica a autora ao Ípsilon.




Perdidas no tempo ficaram também as festas artísticas dadas em benefício dos principais cantores, contemplados com valiosos presentes. "Os cantores vinham por temporadas relativamente longas, o que lhes permitia conviver com a sociedade que se reunia no São Carlos. Hoje seria impensável, pois ficam pouco tempo e o contacto com o público e com os intelectuais é praticamente inexistente", explica a musicóloga Luísa Cymbron, professora na Universidade Nova de Lisboa e autora de uma tese de doutoramento sobre os Teatros de São Carlos e de São João, Porto, no século XIX. "A Erminia Borghi-Mamo, que Bordalo retrata com o seu enorme nariz, tem aquela quantidade imensa de caricaturas porque, além de ser uma cantora destacada, era uma mulher com personalidade forte que conviveu com toda a gente. Era uma espécie de coqueluche da sociedade lisboeta da época. Hoje um fenómeno assim seria impossível."


No século XIX de Bordalo, havia também um "corpus" de obras reconhecidas pelo público que permitia fazer paralelos entre o mundo lírico e a política. "Intermedios Politicos e Theatraes", "Mis-en-scene Legislativo", "Fiascos Parlamentares e Teatrais" são alguns dos títulos de Bordalo, que retrata frequentemente os políticos como personagens de ópera. "Hoje seria impensável tentar caricaturar o engenheiro José Sócrates como o Radamés da 'Aida', achando que é o salvador da pátria, pois quase ninguém ia perceber", diz Luísa Cymbron. "Curiosamente há fortes pontos de contacto entre as caricaturas que Bordalo faz do Fontes Pereira de Melo [líder do Partido Regenerador, que alternava no poder com o Partido Progressista] como Radamés e aquilo que vemos hoje nalgumas caricaturas sobre o primeiro-ministro demissionário. Mas, para o público actual, o que diria a Aida?"

No nosso século XXI, o São Carlos já não é tema para os cartoonistas ou humoristas. "O problema é que teatro deixou de ser o centro da vida cultural e social", diz Luísa Cymbron. "Existem outros centros de interesse e as grandes óperas deixaram de ser paradigmas. Agora os paradigmas estão em séries fabricadas para a cultura de massas, como as telenovelas." A investigadora recorda que o jornal de Bordalo Pinheiro era dirigido a uma elite, enquanto os "sketches" humorísticos actuais, inclundo as caricaturas que aparecem em jornais de referência, se dirigem a um público mais amplo. "A estreia da ópera do Emmanuel Nunes deu uma polémica significativa nos jornais, mas não me lembro de nenhum 'sketch' a propósito disso", diz Cymbron. "Até pode ter existido, mas não teve impacto. Se fosse no século XIX, a polémica entre a Secretaria de Estado da Cultura e o São Carlos teria dado para uma sequência infindável de caricaturas do Bordalo!"


Pelo contrário, João Galamba de Almeida, psicólogo e autor do blogue ""pera e demais interesses", acha que há aspectos no actual público do São Carlos susceptíveis de caricatura. "É um público diferente do da Gulbenkian, que parece ter mais conhecimentos musicais. O São Carlos continua a ser um espaço para uma certa Lisboa se exibir e há mais tendência para albergar um público novo rico e espalhafatoso, ainda que as plateias sejam bastante heterogéneas." A assistência mais caricata de que se lembra foi a das récitas exclusivas para os convidados do BCP, mecenas do teatro. "Era ver o desfile de plumas e lantejolas. Ficava-se com a impressão de que as pessoas só usavam o teatro para se pavonear. Há tendência para um certo deslumbramento, o público embarca em coisas que não têm qualidade, consome de forma pouco criteriosa." Mas o fenómeno não é exclusivo de Portugal. "O público do Metropolitan, de Nova Iorque, por exemplo, também é um bocado deslumbrado. Em Paris também há plumas e lantejolas, mas o público parece mais criterioso. Normalmente são as pessoas com menos recursos, as que estão sentadas nos lugares mais baratos, que estão muito concentradas."




Também na opinião do pianista e maestro João Paulo Santos, "um bom caricaturista encontraria hoje pano para mangas" no São Carlos, onde "tudo é passível de caricatura". "Actualmente são comuns os cartoons com músicos, mas dirigem-se a um grupo especializado, é difícil explicar às pessoas fora do meio onde está a graça." Há 30 anos a trabalhar no São Carlos, João Paulo Santos lembra-se de muitos episódios engraçados. "No final de uma 'Luisa Miller' [de Verdi] com a soprano Mara Zampieri, no início dos anos 80, o tenor zangou-se com o barítono e o caso deu mesmo em pancadaria. No final, com a cortina fechada, estava tudo ao pontapé, mas quando abria todos agradeciam com compostura!" Recorda também um ensaio da ópera "Sansão e Dalila", de Saint-Säens, em que as todas as senhoras do coro escorregavam e rebolavam até à boca de cena assim que entravam no palco, pois alguém tinha colocado uma substância escorregadia no pavimento, ou a ameaça de bomba durante uma récita dos "Troianos", de Berlioz, que fez dispersar pelo Chiado todo o elenco, envergando os figurinos da ópera. "Se o Bordalo fosse vivo continuaria a divertir-se muito com o São Carlos: a corista gorda ainda cá está!"»

3 comentários:

  1. Para uma melhor compreensão do público do São Carlos na época romântica é ler o capítulo "As Noites do São Carlos" que se encontra no segundo volume da excelente obra O Romantismo em Portugal de José-Augusto França. Outra leitura cheio de interesse é ler ou reler O Primo Basílio, onde Eça magistralmente descreve uma ida a São Carlos a uma récita do Fausto.

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  2. Interessantíssimo tudo isto! E o livro, onde se pode comprar?? Estou muito interessado em lê-lo!! Obrigado!!

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  3. Anónimo,

    Não posso dar-lhe referências precisas, mas uma busca pela net ajudá-lo-á a encontrar a obra! Se contactar a Cristina Fernandes (do Público), chegará à dita obra :)

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