quinta-feira, 30 de agosto de 2007

Mysterious Skin: da perversão à histeria



Mysterious Skin
é um filme absolutamente brutal, que versa sobre a repercussão do abuso sexual na vida de dois jovens.

Duas crianças da América profunda, de idades muito próximas – cerca de oito anos - são sexualmente abusadas por um treinador de baseball, que dirige a equipe onde ambas jogam.

Doravante, os destinos destes dois indivíduos não mais se cruzarão, à excepção de um encontro pontual, ainda que profundamente marcante.

As crianças provinham de famílias francamente distintas. A de Brian, mais convencional, apesar de o pai se encontrar pouco implicado na dinâmica familiar, mormente na educação do filho, sendo que, mais tarde, o mesmo pai se separa da família, mantendo contactos muito esporádicos com o filho. A família de Neil, monoparental, conta com uma mãe sui generis, afectivamente muito instável – múltiplos parceiros, relações fugazes -, com um relacionamento com o filho marcado pela ausência de limites.

Do ponto de vista psicológico, o filme tem o mérito de questionar algumas verdades feitas, nomeadamente as que sustentam a tese do traumatismo pós-abuso sexual, como se o dito traumatismo fosse universal, não variando em função da estrutura do abusado (e do contexto em que este se organizou e vive).

Ora, curiosamente – ou não – as duas crianças fazem evoluções radicalmente distintas, após a violação de que são alvo, perpetrada pelo treinador.

Neil, o narrador, faz uma evolução claramente perversa, enveredando pela prostituição homossexual. Frio, cru, desviante, calculista e incapaz de estabelecer vínculos, este indivíduo choca o espectador – entre outras coisas – pela ausência de culpabilidade ligada ao seu estilo de vida.

Já Brian evolui numa linha claramente histérica, sendo a inibição marcante na sua conduta. À boa maneira neurótica – histérica, no caso -, este sujeito defende-se da situação traumática por via da acção do reprimido: a representação do acontecimento é literalmente esquecida, sendo afastada da consciência. Por outro lado, o sintoma – o sangramento frequente do nariz – e bem assim os sonhos de repetição - pesadelos de rapto -, ambos
impregnado de simbolismo que evoca o traumatismo originário, constituem-se como representantes do retorno do recalcado, ou seja, permitem aos conteúdos inconscientes migrarem (ainda que de forma camuflada) para a consciência.

Pela natureza da sua organização neurótica, Brian estrutura uma narrativa explicativa da situação traumática, que embora aberrante e pouco credível, atesta da sua capacidade psíquica: o sujeito pensa, verdadeiramente, não tendo necessidade de agir, contrariamente a Neil, claramente impulsivo, incapaz de pensar (ou seja, fantasiar, criar uma narrativa, ter actividade psíquica, reprimir, enfim).

Freud definira a neurose como o negativo da perversão. Pois bem, a trama deste filme só vem reforçar a actualidade desta tese! Neil, o perverso, segue a linha da impulsividade, ao passo que Brian, o histérico, mantém uma actividade psíquica constante, francamente condicionada pela acção defensiva do recalcamento.

Segundo penso, as evoluções pós-trauma das personalidades descritas – radicalmente antagónicas, como explicitei – decorrem de estruturas psíquicas distintas, não sendo negligenciável, neste contexto, o papel do meio.

De facto, no caso do sujeito mais perturbado, deparamos com uma estrutura familiar marcada pela ausência do paterno, ab initio. Se bem repararmos, jamais é feita uma singela referência ao pai de Neil!

Dir-me-á o leitor – não sem razão – que a ausência paterna não redunda, necessariamente, numa evolução homossexual, muito menos numa estrutura perversa! Contudo, neste caso, o mais aberrante é a inexistência de espaço psíquico para o paterno, tanto na mãe, como no filho. Ironicamente, quando a mãe "decide dar um pai ao filho", oferece-lhe um (treinador) perverso...

Já no caso de Brian, a configuração familiar é de molde a determinar uma evolução mais sadia. Além de uma mãe mais adequada, existe um pai, fisicamente esguio, embora presente mentalmente; há um pai, para o bem e para o mal, com quem o sujeito pode zangar-se – reclamando pela sua ausência, nomeadamente.

Pessoalmente, diria tratar-se de um filme notável, ainda que de uma crueza quase insustentável, sem o mais leve laivo de moralismo. Incontornável, para (alguns) psis.


Sem comentários:

Enviar um comentário