domingo, 24 de dezembro de 2006

007 e o (des)amor objectal: um ensaio psicanalítico



Assisti ontem com indisfarçável gozo a Casino Royal, que conta com Daniel Craig como protagonista. Sou um devoto da séria 007, desde tenra idade!
Não perco um! Conservo-os quase todos em dvd.

Apreciei muitíssimo o filme, que saudavelmente (em aparência...) escapa à habitual rigidez da série.

Pela primeira vez, este 007 não termina com a destruição absoluta do território do inimigo, facto a sublinhar! Acresce a isto o envolvimento amoroso - sublinho, amoroso - de James Bond com uma (invariavelmente) bela Bond Girl.

A primeira vez que tal ocorrera fora por ocasião da estreia de George Lazenby na pele do agente secreto britânico.
Vá-se lá saber por que razão, esse 007 enviúva, escassos minutos após o casamento... Vá-se lá saber por quê, o mesmo 007 perece, cedendo lugar a outro actor...
Não resistiu, nem ao amor, nem à perda do mesmo, arrisco considerar! Voilà!!!

Há razões que só a psicanálise esclarece!

Craig é um notável agente: segue a linha caracterial de Sean Connery, adornando a sua personagem com frieza, calculismo, (quase) absoluto controlo emocional e, last but not least, culpabilidade zero.

À semelhança dos outros actores, sob um fundo de omnipotência narcísica (magistralmente ilustrada pelo título You Only Live Twice, por exemplo), Bond não prescinde dos seus prolongamentos falo-narcísicos: um carro potente, uma arma grande, poderosa e de indiscutível eficácia, um caparro impressionante e a eterna companhia da solidão!



Como sempre, James Bond basta-se a si próprio, apenas recorrendo a pontuais envolvimentos sexuais, obrigatoriamente descartáveis - que nada têm de objectais, muito menos genitais, tal como Freud os concebeu (isto é, correspondendo a uma relação heterossexual, madura, estável e com afecto, sobretudo).

A problemática de 007 é de teor narcísico, polvilhada por traços caracteriais (afins com a psicopatia).

Homem mal amado, cedo se refugiou num amor especular, por super-compensação. Ama-se e investe-se num movimento obsessivamente narcísico: cultiva uma couraça quase inviolável, representada por um corpo atlético e por uma mente fria, avessa à emoção, escrava do controlo.

Pergunto-me que tempo lhe restará para se dedicar aos demais?!
Um caparro daquele calibre não se constrói num ápice, exigindo longas horas diárias de dedicação.

Contrariamente ao que o leitor possa pensar, James Bond não ama por feitio, mas antes por defeito: odeia a mulher, permanente representante da mãe abandónica, que feriu de modo indelével o seu mais tenro narcisismo; assim, gere o seu sadismo, num movimento perpétuo e repetitivo, escravo da vingança.
Fornica com partes de mulher, sendo incapaz de as amar. Sabe lá ele o que isso é!

Qual Don Giovanni, compulsivamente, anseia por engrandecer o seu catálogo de conquistas.

Mas não é tudo!

Noutro quadrante, Bond conta com a submissão à mãe idealizada, intocável, assexuada e limpa: a Rainha.

Deste modo, deparamos com um modelo de mulher clivada - repartindo-se entre a odiosa-abandónica e a idealizada-intocável -, claramente decorrente de uma mãe / mulher primitiva, ausente, profundamente desamante e, por essa via, maltratante.

Virar-se para si foi a solução encontrada: "Já que não fui amado, amar-me-ei, mais do que qualquer outra coisa! Cultivarei um amor inigualável pelo meu reflexo, uma imagem perfeita! Contarei, apenas e só, comigo! Bastar-me-ei, prescindindo dos demais!".

O que é notável no 007 de Daniel Craig é a tentativa da mudança, no encalço da saúde!

Pela segunda vez, na sua longa existência, Bond apaixona-se, ousando entregar-se ao amor de uma mulher! Coisa rara e notável! Cede ao apelo do amor objectal, pelo outro.

Mas... a coisa não vinga (e ainda há quem questione a validade da formulação freudiana de compulsão à repetição!!!).

O problema é que James não pode amar, não sabe amar, porque nunca foi amado por ninguém.

A primeira vez que ousou experimentar o amor por Theresa (vide On Your Majesty Secret Service, 1969), mataram-na! O deslocamento da sua própria agressividade / ódio para o inimigo assassino é por demais evidente...

Desta feita, a mulher a quem James se entrega amorosamente é uma traidora, representante da mãe arcaica, persecutória e destrutiva.

Eis, pois, o velho 007 em acção: por regressão, vítima da repetição, reassume a sua autarcia e omnipotência, sob a eterna capa da frieza implacável.

O que é impressionante é o crescente poder do feminino - materno, na mente do agente secreto!

Como se não bastasse a carga fantasmática que envolve a sua relação com um feminino destrutivo, primitivo, eis que M vira mulher e Monneypenny homem: um desdobramento do par sádico / masoquista - submisso, que persegue James.

Lamentavelmente, Bond continua a sofrer de desamor; eternamente (até ver...).

3 comentários:

  1. Grande filme!
    Também se recomenda
    Entre inimigos
    A Rainha
    O Ilusionista

    Raul

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  2. Caríssimo Raul,

    Da lista citada, falta-nos ver Entre Inimigos. Devemos assistir a uma projecção do dito cujo, ainda hoje ;-)

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  3. Esse é o melhor destes quatro e dou-lhe **** numa escala de 1 a 5.
    Raul

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