Raras são as ocasiões em que o público português pode assistir à um dos pilares da visceralidade musical e teatral.
Salome, juntamente com Elektra - óperas de reportório, de Richard Strauss -, constitui a materialização da heterodoxia do compositor austríaco.
De facto, considerar Richard Strauss um ultra-romântico tout-court, depois das rupturas introduzidas pelas citadas óperas - quer em termos melódicos e de composição, quer no tocante à densidade do texto subjacente - parece-me assaz redutor, senão erróneo!
À época, segundo creio, qualquer uma das óperas inscreveu-se nos antípodas do convencionalismo!!!
Confesso a minha enorme admiração pela capacidade de conceber obras tão extraordinárias, como antagónicas - estilística e estruturalmente falando -, como Ariadne auf Naxos e Salome, Arabella ou Elektra...
Centremo-nos em Salome, paradigma da ópera visceral, onde se cruza histeria, sedução e perversão, num clima de exotismo e decadência.
Discordo, radicalmente, de quem considera que o papel de Salomé se ajusta a um soprano dramático.
Indubitavelmente, interpretar esta figura da lírica requer volume e robustez física, atributos que um soprano dramático, por inerência, deve deter. Mas, Salomé requer, igualmente, lirismo, suavidade e luminosidade - características que dão corpo à dimensão erótica da figura -, sem o que a personagem redunda numa "matrona" (vide Marton e... Nilsson: ambas triunfam pela robustez, falhando redondamente na feminilidade!).
Se me é permitido, na história da lírica recente, apenas conheço três intérpretes capazes de reunir os dois descritos predicados, construindo uma protagonista convincente: C. Studer, L. Rysanek e K. Mattila.
Em minha opinião, a récita de Salomé, em versão de concerto - récita de 27 de Abril de 2006 -, na Fundação Calouste Gulbenkian, com direcção de Lawrence Foster, afirmou-se, acima de tudo, pela qualidade cénica e vocal da protagonista da ópera.
Mlada Khudoley, aquém e além da partitura, assumiu um protagonismo notável, inquestionavelmente.
Escarlate no temperamento cénico e na voz, a soprano russa brilhou pela convicção e entrega.
Compôs uma Salomé, simultaneamente, sedutora, sensual, caprichosa e perversa. Não fora a ópera interpretada em versão de concerto e teríamos, seguramente, um dos mais escandalosos espectáculos de pornografia lírica de que há memória...
Ainda tive a esperança de a ver bambolear-se ao som inebriante da infinitamente exótica Dança dos Sete Véus... Enfim...
(Mlada Khudoley)
Vocalmente, Mlada Khudoley brilhou pela inquestionável endurance. Aguentou a récita com folgo, brilho e fulgor. Dramática "qb" na resistência, melodiosa e radiosa no fraseado, esta intérprete projectou uma protagonista singular.
Ainda assim, aponte-se-lhe algo a corrigir, em termos técnicos: com registos bastante homogéneos, a transição entre os mesmos revelou-se algo estranha à subtileza e elegância...
A técnica, invariavelmente, é o calcanhar-de-Aquiles das intérpretes russas [não te parece, João Ildefonso?! Já discutimos esta questão, vezes sem conta!].
(Mlada Khudoley, como Salome, algures...)
No tocante à restante distribuição, dirijo apenas duas palavras, a dois intérpretes, pela melhor e pior das razões, respectivamente: Donald Litaker - Herodes - e Ruuttunen - Iokanaan.
O tenor Litaker interpretou um interessante Rei Herodes, pleno na decadência, bem ao jeito do seu compatriota K. Riegel, a meu ver, o melhor Herodes da discografia, sob a direcção de C. Von Dohhányl (DECCA). Faltou-lhe, com frequência, mais firmeza na emissão, que se esbateu na / pela massa orquestral...
Quanto ao Iokanaan do barítono finlandês... revelou-se catastrófico!
Sem folgo nem pujança, compôs um João Baptista dificilmente audível, pela falta de recursos vocais, sobretudo. Desenhou uma figura esbatida, decrépita, em tudo estranha ao carácter da personagem, que se imagina altiva e esbelta.
A figura do intérprete não ajudou, há que dizê-lo...
Relativamente à orquestra, Foster assumiu uma direcção eficaz, correcta, embora contida e sem grande brilho.
Apesar do inquestionável domínio de um dos efectivos orquestrais mais extensos - a orquestração da ópera é, ao que julgo, das mais complexas, pelo elevado número de instrumentos envolvidos, bem como pela "polifonia" que encerra -, o maestro revelou falta de espontaneidade e pouca liberdade expressiva.
Por exemplo, não senti a orquestra sublinhar os acentos da Dança dos Sete Véus...
A toada mantinha-se, sem grandes modulações. Aqui e ali, a excitação era visível, mais pela mímica de Foster e pelo volume sonoro impresso, do que pela palpitação musical, diga-se!
***
Para os mais interessados, aqui deixo a minha Salomé de eleição, que não cesso de recomendar:
(DG 431 810 - 2, com direcção de Sinopoli)
Salome, juntamente com Elektra - óperas de reportório, de Richard Strauss -, constitui a materialização da heterodoxia do compositor austríaco.
De facto, considerar Richard Strauss um ultra-romântico tout-court, depois das rupturas introduzidas pelas citadas óperas - quer em termos melódicos e de composição, quer no tocante à densidade do texto subjacente - parece-me assaz redutor, senão erróneo!
À época, segundo creio, qualquer uma das óperas inscreveu-se nos antípodas do convencionalismo!!!
Confesso a minha enorme admiração pela capacidade de conceber obras tão extraordinárias, como antagónicas - estilística e estruturalmente falando -, como Ariadne auf Naxos e Salome, Arabella ou Elektra...
Centremo-nos em Salome, paradigma da ópera visceral, onde se cruza histeria, sedução e perversão, num clima de exotismo e decadência.
Discordo, radicalmente, de quem considera que o papel de Salomé se ajusta a um soprano dramático.
Indubitavelmente, interpretar esta figura da lírica requer volume e robustez física, atributos que um soprano dramático, por inerência, deve deter. Mas, Salomé requer, igualmente, lirismo, suavidade e luminosidade - características que dão corpo à dimensão erótica da figura -, sem o que a personagem redunda numa "matrona" (vide Marton e... Nilsson: ambas triunfam pela robustez, falhando redondamente na feminilidade!).
Se me é permitido, na história da lírica recente, apenas conheço três intérpretes capazes de reunir os dois descritos predicados, construindo uma protagonista convincente: C. Studer, L. Rysanek e K. Mattila.
Em minha opinião, a récita de Salomé, em versão de concerto - récita de 27 de Abril de 2006 -, na Fundação Calouste Gulbenkian, com direcção de Lawrence Foster, afirmou-se, acima de tudo, pela qualidade cénica e vocal da protagonista da ópera.
Mlada Khudoley, aquém e além da partitura, assumiu um protagonismo notável, inquestionavelmente.
Escarlate no temperamento cénico e na voz, a soprano russa brilhou pela convicção e entrega.
Compôs uma Salomé, simultaneamente, sedutora, sensual, caprichosa e perversa. Não fora a ópera interpretada em versão de concerto e teríamos, seguramente, um dos mais escandalosos espectáculos de pornografia lírica de que há memória...
Ainda tive a esperança de a ver bambolear-se ao som inebriante da infinitamente exótica Dança dos Sete Véus... Enfim...
(Mlada Khudoley)
Vocalmente, Mlada Khudoley brilhou pela inquestionável endurance. Aguentou a récita com folgo, brilho e fulgor. Dramática "qb" na resistência, melodiosa e radiosa no fraseado, esta intérprete projectou uma protagonista singular.
Ainda assim, aponte-se-lhe algo a corrigir, em termos técnicos: com registos bastante homogéneos, a transição entre os mesmos revelou-se algo estranha à subtileza e elegância...
A técnica, invariavelmente, é o calcanhar-de-Aquiles das intérpretes russas [não te parece, João Ildefonso?! Já discutimos esta questão, vezes sem conta!].
(Mlada Khudoley, como Salome, algures...)
No tocante à restante distribuição, dirijo apenas duas palavras, a dois intérpretes, pela melhor e pior das razões, respectivamente: Donald Litaker - Herodes - e Ruuttunen - Iokanaan.
O tenor Litaker interpretou um interessante Rei Herodes, pleno na decadência, bem ao jeito do seu compatriota K. Riegel, a meu ver, o melhor Herodes da discografia, sob a direcção de C. Von Dohhányl (DECCA). Faltou-lhe, com frequência, mais firmeza na emissão, que se esbateu na / pela massa orquestral...
Quanto ao Iokanaan do barítono finlandês... revelou-se catastrófico!
Sem folgo nem pujança, compôs um João Baptista dificilmente audível, pela falta de recursos vocais, sobretudo. Desenhou uma figura esbatida, decrépita, em tudo estranha ao carácter da personagem, que se imagina altiva e esbelta.
A figura do intérprete não ajudou, há que dizê-lo...
Relativamente à orquestra, Foster assumiu uma direcção eficaz, correcta, embora contida e sem grande brilho.
Apesar do inquestionável domínio de um dos efectivos orquestrais mais extensos - a orquestração da ópera é, ao que julgo, das mais complexas, pelo elevado número de instrumentos envolvidos, bem como pela "polifonia" que encerra -, o maestro revelou falta de espontaneidade e pouca liberdade expressiva.
Por exemplo, não senti a orquestra sublinhar os acentos da Dança dos Sete Véus...
A toada mantinha-se, sem grandes modulações. Aqui e ali, a excitação era visível, mais pela mímica de Foster e pelo volume sonoro impresso, do que pela palpitação musical, diga-se!
***
Para os mais interessados, aqui deixo a minha Salomé de eleição, que não cesso de recomendar:
(DG 431 810 - 2, com direcção de Sinopoli)
O tempo agora é escasso, por isso só o que o João viu na Gulbenkian.
ResponderEliminarSe há óperas que não deviam ser escutadas em versão de concerto, uma delas é a Salomé. Não se vê os ébanos do Líbano, nem a volúpia dos gestos. Talvez que a Gulbenkian tivesse "medo" deste colosso feminino e da sua provável actuação a roçar o pseudoporno, para além desse Jokanaan sem figura, quando deve representar a virilidade masculina em estado puro.
Strauss e a Salomé fica para depois do almoço.
Raul
Já almoçado.
ResponderEliminarHá cerca de uns sete anos publicaram-se duas biografias de Strauss e numa delas o autor considerava-o o maior compositor do século XX. Não posso estar mais de acordo. Claro que temos Ravel e Strawinsky, mas eu continuo a concordar com o referido biógrafo.
Das óperas de Strauss, talvez a grande fatia do seu génio, que se estende ao poema sinfónico e à canção, podemos considerar dois grupos: um para "full" orquestra, a la Wagner, onde colocamos a Elektra, a Salomé e a Mulher sem Sombra e outro mais para uma orquestra de dimensão mozartiana, a que pertencem O Cavaleiro da Rosa, a Ariadna em Naxos e Arabela.
Pessoalmente gosto mais do primeiro grupo, achando a Elektra uma das melhores óperas jamais escritas e colocando a Salomé, a sua irmã gémea, como já lhe chamaram, logo depois. Do segundo grupo não compartilho a admiração do João pela Arabela, que tirando a cena final, encontro-a cheia de ideias, sim, mas muito avara de bela melodia. À Arabela, prefiro muito mais a Daphne, com aquele final fabuloso (Bohm, Gueden, Salzburg, DG).
Quanto à Salomé reconheço que o potencial vocal da Nilsson não serve a "jovem" princesa da Judeia, mas, como já disse a propósito da Butterfly da Tebaldi, é um prazer para os sentidos ouvir a voz única da Nilsson a cantar o que Strauss escreveu para a Salomé e, por isso, não a dispenso. Quanto à Salomé ideal, confesso que nunca ouvi a Rysanek nem a Studer, pelo que temo por um juízo não apoiado.
Mas quanto ao Herodes, pessoalmente não tenho a mínima dúvida: ninguém se iguala nem suplanta Gerard Stolze. Aliás não conheço melhor tenor "sprechgesang" que ele, o Mime (Siegfried) o tenor da Carmina Burana ideais. Certo que o Riegel é um perfeito Herodes, mas ganha muito em vê-lo; só ouvi-lo vemos logo que está longe da voz do Stolze.
Raul
A minha Salomé também é a Studer que a meu ver consigue uma proeza única... transformá-la numa adolescente "birrenta" e caprichosa.
ResponderEliminarJ. Ildefonso.
Caro João.
ResponderEliminarSobre a técnica da maioria dos cantores Russos temos absolutamente o mesmo parecer:-))
Existem excepcões, é claro, lembro-me especialmente dos excelentes tenores Russos dos meados dos anos 50 que todos os amantes da lírica deviam conhecer, como o Koslosvsky e o Lemesky... não estou seguro quanto à grafia dos nomes...
J. Ildefonso.
Raul,
ResponderEliminarAinda que em versão de concerto, a criatura enfeitiçou-me...
Raul II (!!!)
ResponderEliminarGosto tanto do Strauss de Câmara (Arabella, Ariadne, Rosenkavalier, etc.( como do mais dramático!
Acredito que não se deixe tocar pela Arabella! Comigo, passou-se o mesmo até VER uma protagonista plena de erotismo e volúpia... como nunca antes ocorrera (apesar de muito apreciar a encarnação da Della Casa, que é uma menina bem comportada): quess who she is!?
Quanto ao Herodes ideal, mantenho-me na minha, prometendo rever a Salome do SOlti, que aqui está a olhar para mim ;-)))
Um abraço
João,
ResponderEliminarInfelizmente, desconheço esses tenores, mas recordo um soberano, dos anos 1970, que as editoras não apreciavam: Atlanov! O último GRANDE tenor russo, porventura!
João,
ResponderEliminarO sua admiração pela Matilla toca o irracional. Homem, se me permite, você está apaixonado!!! :)
Agora compreendo: só apaixonando-se pela intérprete é que nos esquecemos do que se interpreta. OK
Raul
Eu gosto bastante do tenor russo Gegam Grigorian quer em ópera russa quer pelo menos na versão original da Força do Destino dirigida pelo Gergiev.
ResponderEliminarRaul
Caro João.
ResponderEliminarTerei o maior prazer em apresentá-los. O Koslosvsky é o que de mais elegante e refinado se encontra em voz de tenor. Um Kraus com um timbre mais belo ainda e uma técnica que lhe permite insuflar ou diminuir uma nota em qualquer ponto da sua tessitura!O Lemesky é um pouco mais robusto infelizmente só lhe conheço gravações um pouco tardias. Mesmo assim é o meu Lensky de referência ao lado da Veniskay no início dos anos 50. Existe ainda um outro tenor Russo da mesma época de excepcional qualidade mas infelizmente não me recordo do nome. Sorry.
MyHiraet,
ResponderEliminarQue bom ter-te de volta ao meu blog, tu que o animaste durante tanto tempo! Depressa chegaste e... depressa partiste, sem que percebesse por que razão...
Tenho duas coisas a dizer, hoje, 4 anos depois da Salomé, e quatro dias após a Ariadne:
ResponderEliminar- Não pude escrever melhor sobre o Foster no meu blog. Sou como ele, caindo-me o queixo ao ver como me faltaram as palavras e aqui estão todas com grande espontaneidade e afinação.
- Sinopoli é Rei. Sempre.
Cumprimentos da operalisboa.blogspot.com