terça-feira, 20 de dezembro de 2005

ELEKTRA, de R. Strauss: um exercício de secundarização

Embora não esteja, hoje, particularmente inspirado, conforme prometera, aqui vai, por fim, a minha apreciação detalhada desta pérola musical e teatral.



(DG 00440 073 4095)

A glória desta magistral interpretação, da mais brutal das óperas de Richard Strauss - Elektra, de sua graça -, radica na direcção de Böhm, na composição de Rysanek e, acima de tudo, no labor de mise-en-scène, que conta com a assinatura de Götz Friedrich.

A prodigiosa encenação de Friedrich - que data dos anos 1980, sendo intemporal - sublinha o óbvio, qual Ovo de Colombo, exacerbando-o, até aos limites do representável.

Elektra é uma ópera crua, despudorada e selvática sobre a brutalidade, dominada pela libido, na mais categórica das acepções do termo, como Freud o concebeu: expressão da agressividade e da sexualidade.
O encenador compreendeu esta dualidade, explorando-a e representando-a, como poucas vezes tive ocasião de ver, em matéria de produção operática, claro está!

Por que falo de óbvio?! Justamente, porque a tónica da encenação é colocada na incompatibilidade inexorável de dois mundo, clivados em absoluto: o de Elektra - monocromático (predominantemente cinza, com dégradés, alusões a um luto paterno inelaborável, que domina toda a trama), brutal, primário, rochoso e desgrenhado - e o de Klytämnestra - sofisticado, ornamentado até à exaustão, dominado por um erotismo perverso e luxuriante...

Plasticamente, esta concepção é alvo de um trabalho memorável, sendo os contrastes sublinhados com grande mestria: os mundos de Elektra e de sua mãe - absolutamente antagónicos - são entremeados por uma coluna clássica, de uma simplicidade notável!

O elemento clássico - riquíssimo, do ponto de vista simbólico, a começar pelo equilíbrio que encerra - sublinha as diferenças, assumindo-se como um marco de fronteira (e alternativo, se quisermos, à insanidade e perversão...), que se distingue de um e de outro dos universos, radicalmente.


Que eficácia singela! Notável!!!


A direcção de Böhm - que dirige pela derradeira vez, em estúdio, se não me engano - é meticulosa, muito precisa mas visceral: a rica expressividade orquestral é extraída com uma astúcia calculada, absolutamente controlada, roçando a perfeição, pela excelência...
De início, os tempi poderão chocar os mais ortodoxos, pela lentidão, mas logo nos habituamos!

Vamos aos solistas...

Vergo-me vezes e vezes sem conta diante do talento de La Rysanek, straussiana absoluta.
Nesta interpretação, pela primeira e única vez, Leonie Rysanek encarna o papel titular da ópera - antes encarnara Chrysothemis e acabará a carreira na pele de Klytämnestra.
Esperou pelos cinquenta anos para o fazer, cedendo à sábia sugestão de Böhm.

A maturidade interpretativa domina a figura complexa e brutal de Elektra: a expressão alienada, o ódio, o rancor, o desespero, a imensidão da dor ganham asas na leitura de Rysanek, que se afirma como Elektra definitiva (brutal, como a de Nilsson e de Marton, mas mais feminina; colossal como a de Polaski, ainda mais humana que a de Behrens...).
A voz está mais madura e escura do que outrora - como se quer! -, veiculando de forma plena toda a complexidade da protagonista.

Astrid Varnay, no seu auge, encarnou também o papel titular da ópera, tendo mesmo sido considerada uma das suas intérpretes de referência, sobretudo pelo volume dramático e vocal que imprimia a Elektra.

Pessoalmente, sempre apreciei o seu arrojo e histrionismo, inversamente proporcionais à falível técnica.


Nesta interpretação, Varnay (bem entradota na idade...) compõe uma Klytämnestra tremenda, recorrendo à notória falibilidade vocal de forma assaz inteligente: coloca-a ao serviço da construção dramática da decadência! A voz fatigada e o crescentemente incómodo vibrato esbatem-se de forma impressionante, diante da espessura cénica de Astrid Varnay! Voilà, rien que ça! Eis o que, no meu modeste entender, constitui um exemplo sumo de «inteligência musical»!


A Chrysothemis de Ligendza é muito convincente, sobretudo em termos interpretativos.

Não tendo uma voz particularmente bela (antes pelo contrario... ácida e insegura, nas passagens mais agudas), Catarina Ligendza envolve-se num jogo dramático de forma arrebatadora, conferindo à personagem uma dimensão pueril extraordinária. A sua Chrysothemis encontra-se radicalmente presa a um conflito com contornos histéricos, irresolúvel: anseia pela maternidade, deseja assumir a sua feminilidade, tanto quanto as teme...


Destacaria, por último, a prestação de Fischer-Dieskau, maduro, bem trabalhado, altaneiro e soberano.
A cena que constrói com Elektra - desde o reconhecimento, até à concretização da vingança - constitui, a meu ver, o ponto alto desta notável récita: de uma riqueza dramática transcendente, pontuada pelo fascínio e pelo horror...


Enfim, uma magnifica interpretação, encabeçada por um elenco assumidamente sénior, que se move numa encenação assente em infinitos desdobramentos da crueza, cuja expressão - quase pornográfica! - é avessa aos limites...

Um valor seguríssimo, interdito a menores de 30 anos, porque prolixo em cenas altamente chocantes...

5 comentários:

  1. Fiquei abismada com esta portentosa crítica! Apeteceu-me ir a correr comprar ou encomendar um exemplar. E, confessava o seu autor não se sentir particularmente inspirado. Imagino o que escreveria se o estivesse.
    Gostei muito de ler este post. Parabéns!

    ResponderEliminar
  2. Caríssima,

    Compre, compre, mas não veja esta pérola nesta quadra...
    Une fois de plus, merci pour le compliment!

    João Dissoluto

    ResponderEliminar
  3. Gratos, gratos, caríssima!
    Falaremos de tudo isto (e muito mais), pessoalmente!

    Quanto à ELEKTRA... é interdita a menores de 30, definitivamente! Tudo é excessivo, cru e brutal! Extraordinário...

    ResponderEliminar
  4. Não há palavras para descrever a qualidade deste DVD.

    ResponderEliminar
  5. Raul,

    É absolutamente definitivo, concordo consigo!

    ResponderEliminar