sábado, 29 de outubro de 2005

A propósito de Lucia di Lammermoor: o esplendor da escola americana

A escola belcantista italiana conta com três grandes representantes: Bellini, Rossini e Donizetti.

O belcanto, na sua essência, radica na primazia da ornamentação vocal, em detrimento da interpretação.
Um cantor belcantista, consequentemente, deve possuir uma técnica infalível, a que deve aliar-se uma invulgar agilidade vocal. Dele se exige facilidade na coloratura, termo que sintetiza os requisitos descritos.

O repertório romântico conta com inúmeros papeis tipicamente belcantistas, sobejamente conhecidos e apreciados pelo grande público: Marie (La Fille du Régiment), Arturo (I Puritani), Rosina (Il Barbieri di Siviglia), etc.
Habitualmente, os intérpretes destes papeis contam com o sufixo ligeiro associado à sua tessitura: soprano-ligeiro (ou coloratura, na opinião de alguns) e tenor-ligeiro.

Porém, existem personagens do belcanto que exigem do intérprete mais do que uma técnica primorosa e indesmentível agilidade vocal. É neste âmbito que se destacam algumas figuras donizattianas - Lucia e Anna Bolena - e bellinianas - Norma, porventura a mais exigente de todas elas.

O intérprete destes papeis deve possuir um talento interpretativo robusto e uma mestria vocal desmesurada! Imagine-se uma síntese entre o soprano ligeiro e o soprano dramático!!
É por esta razão que os cantores que abordam estes papeis pertencem à dúbia categoria lírico-spinto (de agilidade) ou dramatico de agilitá.
Exemplos? ...Callas, Sutherland (quando se lembrava de interpretar), Caballé (nos dias em que estava para aí virada), Sills, etc.

Este post surge a propósito deste artigo, que versa sobre uma récita recente de Lucia di Lammermoor, no Met.

Ao lê-lo, recordei algumas intérpretes - todas americanas, voilà! - do papel titular, que tive a felicidade de ver actuar: Swenson (Met, 1999) e Anderson (Bastilha, 2000).
Por muitos anos que viva, jamais esquecerei a Lucia de June Anderson, que vi na récita da minha vida...


(June Anderson, Lucia Assoluta, Bastille, 2000)

A jovem cantora lírica americana Elisabeth Futral surge, agora, na pele desta tremenda personagem. Vi-a, há cerca de seis anos, no New York City Opera, no papel titular da ópera de Moore, The Ballad of Baby Doe... Beverly Sills - primeira intérprete do papel - adorou-a... Não posso dizer o mesmo...


(Ruth Ann Swenson, Lucia di Lammermoor, Met, 1999)


Esta personagem de Donizetti é fascinante, correspondendo ao mas sólido dos retratos cénicos líricos da psicose esquizofrénica. Interpretá-la implica, pois, aceder ao bizarro e dissociado universo da esquizofrenia (vulgo loucura).
Anna Bolena
- do mesmo compositor -, proporciona-nos, em paralelo, um interessante retrato alternativo desta patologia, embora menos esplendoroso.

Por ironia do destino, Donizetti, atingido pela síflis, desenvolveu um quadro psicótico agudo (altamente dissociativo, imagino!), no final da sua curta vida; faleceu aos 47 anos, completamente louco.

Para a posteridade, Callas e Sutherland deixaram-nos múltiplas interpretações. Destacou (da primeira) EMI 7243 5 66441 2 0, pela soberba interpretação e (da segunda) DECCA 00289 410 1932, pela pureza do timbre, e pela solidez do cast - um Pavarotti glorioso, um Milnes de antologia e um Ghiaurov soberano.

2 comentários:

  1. Uma esplêndida materialização das funções da linguagem, este post: informativo, apelativo, emotivo e muito mais.

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  2. Sábias, doutas e afectuosas, as suas palavras estimulam a minha escrita, qual bálsamo!

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