quinta-feira, 18 de agosto de 2005

Don Giovanni, Muti e a glória americana


(EMI 575 535 2)

Ricardo Muti, maestro italiano recentemente caído em desgraça, ex-Senhor absoluto do alla Scala, legou à posteridade, em inícios da década de noventa, um dos mais esplendorosos Don Giovanni que alguma vez escutei !

Confesso que parti para esta audição com inúmeras reservas.
Sempre apreciei o labor de Muti em territórios verdiano e verista.
No que a Mozart concerne, nunca me convencera, apesar da elevada reputação de que goza a sua leitura de Le Nozze di Figaro (EMI).

Quando Ricardo Muti empreendeu esta hercúlea gravação, a história contava já com centenas de outras interpretações, algumas delas absolutamente incontornáveis para qualquer Mozartiano - Giulini´59, Krips´58, Mitropoulos´56, Busch´36 e Haitink´84, entre inúmeras outras.

Afinal, o que tem de tão marcante e destacado a presente interpretação ?

As virtudes desta realização são diversíssimas, começando pela direcção de Muti, de entre as mais minuciosas, disciplinadas e meticulosas que conheço.
Tecnicamente, o desempenho orquestral é primoroso !
Apesar de algo convencional nos tempi, o maestro italiano imprime um ritmo arrojado aos recitativos, que surpreendem pela ousadia; a declamação está sujeita a um débito inusitado, por vezes muito surpreendente !

A mestria da direcção de Ricardo Muti observa-se, ainda, no esmero e cuidado de que é alvo o acento italiano dos intérpretes, provavelmente um dos mais abertos, bem articulados e fieis à tradição disciplinada de outrora ! Um regalo...

Vocalmente, o mérito desta interpretação radica no esplendor de quatro cantores americanos, absolutamente divinos: Ramey, Shimell Vaness e Studer.

Samuel Ramey - que nos anos oitenta apenas tinha como rival, no papel titular, Thomas Allen -, pela primeira vez, encarna o servo do vil Don Giovanni.
Na passada temporada, com 63 anos bem vividos e cantados, no Met, regressou a Leporello, se a memória não me trai...

O que dizer deste Monstro?
O timbre é de uma beleza singular, viril, audacioso e elegantíssimo - porventura em demasia, dado a natureza da personagem interpretada, em tudo alheia a estas qualidades !
Creio que a composição interpretativa deveria assentar, primordialmente, nas dimensões corrosiva e irónica da personagem, traços que, em meu entender, constituem o essencial de Leporello.
O facto de Ramey ter interpretado centenas de vezes o papel titular da ópera - identificando-se com ele em absoluto - está bem patente nesta encarnação. Trata-se, seguramente, do mais nobre dos servos de Don Giovanni com que conta a discografia.

Muti propôs a interpretação do papel titular da ópera a William Shimell, barítono pouco apreciado pela editoras discográficas.
Shimell oferece-nos uma caracterização quase perfeita de Don Giovanni, não fora a ausência de linhagem da interpretação.
Predominantemente mais perverso do que narcísico, insistindo no carácter bruto, vil e rasca, numa linha claramente maniforme, o intérprete renega as facetas aristocrática, subtil e nobre desta figura da ópera, facetas essas essenciais do Burlador de Sevilha !
Dir-se-ia que fez escola, pois Terfel, na sua fabulosa interpretação de Don Giovanni, insiste, igualmente, no lado mais hedionda e obscuro desta mesma figura...

Um servo nobre e um amo rasca: será casual esta inversão de atributos ou mais um golpe de génio de Muti ?

A Donna Elvira de Caroll Vaness levou-me à loucura... Tive vontade de a consolar !
Outrora gloriosa Donna Anna - sob a direcção de Haitink (EMI´1984), nomeadamente -, Vaness transborda de latinidade. O ardor e sangue quente desta Elvira são tremendos. Dela brotam, a rodos, ciúme, ternura, dor, ódio e rancor. De uma humanidade plena !
Nos antípodas da mítica Donna Elvira de Schwarzkopf, Caroll Vaness entra para a história com esta caracterização, soberbamente apoiada numa voz, técnica e emissão de antologia.

Cheryl Studer é uma das cantoras fétiche de Muti. Ao longo da curta mas gloriosa carreira da soprano americana, o maestro propôs-lhe diversíssimos papeis - Elena (I Vespri), Odabella (Attila), Donna Anna, para não mencionar os wagnerianos e straussianos, em meu entender, aqueles em que Studer mais brilhou.

Era uma intérprete de mão cheia, vocalmente luminosa e tremenda em cena. Por ela nutro uma admiração imensa...
Hélas, a pressão das editoras e de maestro menos escrupulosos associada ao deslumbramento e omnipotência da intérprete materializaram-se num declínio vocal precoce.

Na presente gravação, Cheryl Studer propõe-nos uma original Donna Anna.
A personagem interpretada, assente numa vocalização intensa e luminosa, está inexoravelmente presa à ansiedade depressiva, vítima que é de um luto inelaborável.
De forma magistral, Studer subordina todas as demais facetas da órfã do Comendador à primazia depressiva. Não conheço outra igual !

No que se refere aos restantes intérpretes, pouco há a acrescentar.
De Carolis - o último Don Giovanni que passou pelo São Carlos, sem deixar saudades - compõe um Masetto vocalmente muito correcto e sólido, em termos interpretativos; o mesmo não se pode dizer da Zerlina de Mentzer !
À excepção de Berganza e Bartoli, não há mezzo que encarne Zerlina com graça ! Soam sempre a falso ! Mentzer não é excepção. Além de uma voz feia, a interpretação é paupérrima. Vale-lhe uma técnica rigorosa e cuidada, enfim.

Lopardo - destacado belcantista -, não é um mozartiano, em definitivo !
Revelando-se exímio nas vocalizações de Il Mio Tesoro - ária que canta soberbamente -, Franck Lopardo peca pela quase ausência de dotes dramáticos.

O Baixo-barítono Jan-Hendrik Rootering compõe um Commendatore algo parco em termos dramáticos. Não creio ter assimilado, em pleno, a dimensão trágica da personagem, que apenas episodicamente amedronta o ouvinte...

Para terminar, sem hesitar um segundo, diria tratar-se do Don Giovanni da era DDD, ainda mais bem conseguido do que o de Haitink (EMI).
Pautando-se pelo rigor, tanto vocal, como instrumental, esta leitura afirma-se pela técnica, primorosa e praticamente infalível. Não há o mais discreto deslize, à excepção das fragilidades interpretativas mencionadas.

Este é, acreditem, um valor mais do que seguro da minha ópera favorita, que conheço quase de cor. Para a posteridade !

Nota: a EMI retirou do mercado a edição original desta interpretação. A mesma figura, agora, numa compilação (mid-price) subordinada à trilogia Da Ponte / Mozart, cuja referência se encontra sob a foto deste post.

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