Nos (diversos) posts que consagrei ao percurso e à minha devoção incondicional por La Mattila, sempre evitei falar, em profundidade, da sua interpretação de Salomé...
C´est vrai que l´argent fait (presque) tout ! Et, quand on n´en a pas... Quando temos um orçamento limitado, a coisa torna-se complicada: temos de fazer opções !
Assim fiz !
Na passada temporada, graças à tradução de um livro (Psicologia da Personalidade - CLIMEPSI) - tarefa que empreendi, estoicamente, durante três intermináveis meses -, eu e a minha mulher fomos a Nova-Iorque, entre outras coisas (leia-se, entre outras récitas...) para assistir à nova produção da citada ópera de R. Strauss, especialmente concebida para a cantora finlandesa.
Se o vil-metal não constituísse problema para as nossas finanças, não teria hesitado em assistir à Salome-Mattila da Bastilha, asseguro-vos !
A personagem Salomé, tanto na caracterização de Wild, como na de Strauss, é de uma complexidade tremenda, do ponto de vista psicológico.
Ambos são exímios no delineamento da perversão, que resume o essencial do funcionamento psicológico da personagem central, tanto da peça, como da ópera.
Aliás - permita-se-me o parêntesis -, o libreto é quase um decalque da peça, tendo Strauss, aqui e ali, suprimido alguns trechos da dita peça, que considerou acessórios e dispensáveis, depreendo eu.
Ao falar de perversão, faço-o em termos psicanalíticos.
Quando Freud utilizava este termo, na sua acepção clínica - nomeadamente, a propósito da sexualidade infantil... lá iremos, um dia -, fazia-o com um intuito muito claro, que pouco tinha que ver com depreciação, desvalorização, ou qualquer outra intenção pejorativa, como hoje se observa.
A sexualidade perversa, na lógica freudiana, é aquela que não envolve os genitais, ou seja, tudo o que se situa aquém ou além da cópula. Voilà !
Na actualidade, o termo perversão - mercê das múltiplas e desconfortáveis conotações com o desvio, a imoralidade e a promiscuidade, para citar, apenas, os mais correntes -, em termos psicopatológicos, foi substituído pela designação parafilía.
Quoi qu´il en soit, admitamo-lo: entre os clínicos, continuamos a falar de perversão e de carácter perverso !
Efectivamente, como disse, a personagem Salomé, da ópera homónima de Strauss, é imensamente complexa !
Comecei pelo fim, na minha interpretação do seu funcionamento, quando concluí pela linha da perversão.
Entre outros aspectos, o que há de fascinante na construção da personagem é a sua progressão - refiro-me à leitura de inspiração psicopatológica...
Salomé, desde o início da ópera, apresenta traços claramente histéricos.
Uma tremenda e irresistível sedutora, Salomé é uma jovem insinuante, que tudo procura alcançar por via da sedução. O contacto e as relações têm, invariavelmente, a marca da erotização... Acresce a estes traços, o capricho !
A própria natureza da relação que mantém com a mãe e com o padrasto - marcada pela rivalidade, com a mãe, e pelo desejo vs repulsa pelo padrasto, que ousa disputar com a progenitora - apresenta contornos edipianos, tão caros às personalidades histéricas.
À medida que a trama progride, o volte-face começa a vislumbrar-se... Diante a resistência de João Baptista - quiçá o primeiro a resistir aos encantos da princesa -, ferida de morte no seu narcicísmo, a jovem exibe outra dimensão, bem mais complexa e perturbada.
O desejo da posse assume, então, contornos obsessivos, mas Salomé - hélas - é uma mulher perversa.
O seu estilo relacional cede lugar a uma lógica de subordinação ao interesse e desejo, sendo que estes têm subjacente a marca de uma sexualidade distorcida, na sua acepção mais plena: do desejo, inicial, pelo homem pleno, à obstinação pela parte do mesmo...
A jovem, num rasgo insano e necrófilo - perverso, em absoluto -, acaba por copular com uma parte de João Baptista.
A parte, em lugar do todo, constitui outra das diferenças que separa a sexualidade genital - a adulta -, da perversa ! A explicitação deste traço fundamental, na ópera, via Salomé, é imensa ! Única, diria eu, tanto quanto a memória me permite alcançar...
Regressemos a Mattila, que foi perversa por dez récitas: cinco na Bastilha, cinco no Met...
Não tendo formação psicológica alguma - les grands acteurs n´en ont pas besoin, car il leur suffit le talent ! -, Karita Mattila foi capaz de assimilar todas as dimensões que enunciei, compondo uma personagem densa e exuberante; foi particularmente bem conseguida a expressão da tríade capricho-desejo-sedução ! Aliás, a própria interprete manuseia estes traços com particular habilidade... em todas as suas interpretações.
Durante a récita, no ar, sentia-se o odor do desejo, a volúpia pairava...
Notável, ainda, foi a ousadia com que deu corpo à sensualíssima dança dos sete véus... Quanto(a) e(x / r)otismo...
Recordo que a grande maioria das interpretes que encarnaram, on stage, a Salomé, socorreram-se de um duplo, neste momento da ópera. Mais que não seja, como se imagina, dançar durante cerca de oito minutos para, quase de seguida, ter de afrontar uma colossal cena final - que arranca as visceras à cantora -, de mais de um quarto de hora, é ousado !
Obviamente que La Mattila recusou o recurso à dupla, tal como Malfitano, na saudosa produção de Bondy... Embora por razões diferentes, creio eu...
A cena final foi um orgasmo... Longo, longo, longo ! LE petit-mort absolu !
Quanta entrega, quanta insanidade...
Inépuisable, telle était-elle...
Pelo caminho, deixo a referência da minha Salomé de eleição: Sinopoli, 1991 (DG 431 810-2), com Studer, no papel titular, de uma luminosidade inigualável, plena de sensualidade e beleza... vocais !
O João Baptista desta interpretação é Terfel. Não conheço nenhum melhor ! Seguramente o mais sólido e viril, malgré son choix...
Mais il n´y a jamais deux sans trois ! A Herodias desta gravação é uma das mais sólidas Salomés de outrora: Rysanek.
A interpretação de Solti (DECCA), com B. Nilsson no papel titular é outra referência. Apesar das inúmeras virtude desta gravação e da plenitude de meios da interprete sueca, pessoalmente, soa-me sempre a Brunnhilde, numa espécie de figura composita... uma síntese de Salomé com a citada heroína wagneriana, a roçar o brutal !
Por aqui me fico, pois a prosa vai longa e o trabalho (ainda) me espera !
Aqui ficam mais algumas fotos (interditas a menores de 18, como se dizia no tempo da outra senhora) da produção nova-iorquina desta monumental encarnação de Karita Mattila.
Um agradecimento muito especial a CAD, em nota de roda-pé.
Por tudo.
Será esta uma identificação plena ?
C´est vrai que l´argent fait (presque) tout ! Et, quand on n´en a pas... Quando temos um orçamento limitado, a coisa torna-se complicada: temos de fazer opções !
Assim fiz !
Na passada temporada, graças à tradução de um livro (Psicologia da Personalidade - CLIMEPSI) - tarefa que empreendi, estoicamente, durante três intermináveis meses -, eu e a minha mulher fomos a Nova-Iorque, entre outras coisas (leia-se, entre outras récitas...) para assistir à nova produção da citada ópera de R. Strauss, especialmente concebida para a cantora finlandesa.
Se o vil-metal não constituísse problema para as nossas finanças, não teria hesitado em assistir à Salome-Mattila da Bastilha, asseguro-vos !
A personagem Salomé, tanto na caracterização de Wild, como na de Strauss, é de uma complexidade tremenda, do ponto de vista psicológico.
Ambos são exímios no delineamento da perversão, que resume o essencial do funcionamento psicológico da personagem central, tanto da peça, como da ópera.
Aliás - permita-se-me o parêntesis -, o libreto é quase um decalque da peça, tendo Strauss, aqui e ali, suprimido alguns trechos da dita peça, que considerou acessórios e dispensáveis, depreendo eu.
Ao falar de perversão, faço-o em termos psicanalíticos.
Quando Freud utilizava este termo, na sua acepção clínica - nomeadamente, a propósito da sexualidade infantil... lá iremos, um dia -, fazia-o com um intuito muito claro, que pouco tinha que ver com depreciação, desvalorização, ou qualquer outra intenção pejorativa, como hoje se observa.
A sexualidade perversa, na lógica freudiana, é aquela que não envolve os genitais, ou seja, tudo o que se situa aquém ou além da cópula. Voilà !
Na actualidade, o termo perversão - mercê das múltiplas e desconfortáveis conotações com o desvio, a imoralidade e a promiscuidade, para citar, apenas, os mais correntes -, em termos psicopatológicos, foi substituído pela designação parafilía.
Quoi qu´il en soit, admitamo-lo: entre os clínicos, continuamos a falar de perversão e de carácter perverso !
Efectivamente, como disse, a personagem Salomé, da ópera homónima de Strauss, é imensamente complexa !
Comecei pelo fim, na minha interpretação do seu funcionamento, quando concluí pela linha da perversão.
Entre outros aspectos, o que há de fascinante na construção da personagem é a sua progressão - refiro-me à leitura de inspiração psicopatológica...
Salomé, desde o início da ópera, apresenta traços claramente histéricos.
Uma tremenda e irresistível sedutora, Salomé é uma jovem insinuante, que tudo procura alcançar por via da sedução. O contacto e as relações têm, invariavelmente, a marca da erotização... Acresce a estes traços, o capricho !
A própria natureza da relação que mantém com a mãe e com o padrasto - marcada pela rivalidade, com a mãe, e pelo desejo vs repulsa pelo padrasto, que ousa disputar com a progenitora - apresenta contornos edipianos, tão caros às personalidades histéricas.
À medida que a trama progride, o volte-face começa a vislumbrar-se... Diante a resistência de João Baptista - quiçá o primeiro a resistir aos encantos da princesa -, ferida de morte no seu narcicísmo, a jovem exibe outra dimensão, bem mais complexa e perturbada.
O desejo da posse assume, então, contornos obsessivos, mas Salomé - hélas - é uma mulher perversa.
O seu estilo relacional cede lugar a uma lógica de subordinação ao interesse e desejo, sendo que estes têm subjacente a marca de uma sexualidade distorcida, na sua acepção mais plena: do desejo, inicial, pelo homem pleno, à obstinação pela parte do mesmo...
A jovem, num rasgo insano e necrófilo - perverso, em absoluto -, acaba por copular com uma parte de João Baptista.
A parte, em lugar do todo, constitui outra das diferenças que separa a sexualidade genital - a adulta -, da perversa ! A explicitação deste traço fundamental, na ópera, via Salomé, é imensa ! Única, diria eu, tanto quanto a memória me permite alcançar...
Regressemos a Mattila, que foi perversa por dez récitas: cinco na Bastilha, cinco no Met...
Não tendo formação psicológica alguma - les grands acteurs n´en ont pas besoin, car il leur suffit le talent ! -, Karita Mattila foi capaz de assimilar todas as dimensões que enunciei, compondo uma personagem densa e exuberante; foi particularmente bem conseguida a expressão da tríade capricho-desejo-sedução ! Aliás, a própria interprete manuseia estes traços com particular habilidade... em todas as suas interpretações.
Durante a récita, no ar, sentia-se o odor do desejo, a volúpia pairava...
Notável, ainda, foi a ousadia com que deu corpo à sensualíssima dança dos sete véus... Quanto(a) e(x / r)otismo...
Recordo que a grande maioria das interpretes que encarnaram, on stage, a Salomé, socorreram-se de um duplo, neste momento da ópera. Mais que não seja, como se imagina, dançar durante cerca de oito minutos para, quase de seguida, ter de afrontar uma colossal cena final - que arranca as visceras à cantora -, de mais de um quarto de hora, é ousado !
Obviamente que La Mattila recusou o recurso à dupla, tal como Malfitano, na saudosa produção de Bondy... Embora por razões diferentes, creio eu...
A cena final foi um orgasmo... Longo, longo, longo ! LE petit-mort absolu !
Quanta entrega, quanta insanidade...
Inépuisable, telle était-elle...
Pelo caminho, deixo a referência da minha Salomé de eleição: Sinopoli, 1991 (DG 431 810-2), com Studer, no papel titular, de uma luminosidade inigualável, plena de sensualidade e beleza... vocais !
O João Baptista desta interpretação é Terfel. Não conheço nenhum melhor ! Seguramente o mais sólido e viril, malgré son choix...
Mais il n´y a jamais deux sans trois ! A Herodias desta gravação é uma das mais sólidas Salomés de outrora: Rysanek.
A interpretação de Solti (DECCA), com B. Nilsson no papel titular é outra referência. Apesar das inúmeras virtude desta gravação e da plenitude de meios da interprete sueca, pessoalmente, soa-me sempre a Brunnhilde, numa espécie de figura composita... uma síntese de Salomé com a citada heroína wagneriana, a roçar o brutal !
Por aqui me fico, pois a prosa vai longa e o trabalho (ainda) me espera !
Aqui ficam mais algumas fotos (interditas a menores de 18, como se dizia no tempo da outra senhora) da produção nova-iorquina desta monumental encarnação de Karita Mattila.
Um agradecimento muito especial a CAD, em nota de roda-pé.
Por tudo.
Será esta uma identificação plena ?
Essa interpretação apenas existe em vídeo, se não me engano... Weikl é o João Baptista, não ?
ResponderEliminarBom, efectivamente, não conheço a dita cuja, mas pelo que li e ouvi dizer, não é uma referência, apesar de Stratas ter tudo para compor uma Salomé plena !
Bohm e a Salome, definitivamente não deitam cartas... A única gravação, em estúdio, que o maestro dirigiu desta ópera é uma desilusão ! Nem mesmo a sensual e elegante G. Jones excita...
Bom... se assim o diz, importa-se de me dar a referência dessa interpretação ? Creio ser da DG...
ResponderEliminarSe gosta da Stratas, proponho-lhe dois papeis antagónicos: La Traviata (em filme, com Domingo e Milnes, numa produção discutível de Zeffirelli) e Lulu, sob a direcção de Boulez. Esta última referência é extraordinária - a capa da dita está na coluna da direita deste blog !
João,
ResponderEliminarAtrasado um ano.
Conheço muito bem a versão da Stratas em video. Tem tudo ( caracterização da heroína, uma excepcional Herodias, a Varnay, os outros intérpretes,...) para ser uma Salomé de referência, com a excepção do mais importante: os meios vocais da Stratas. Falta-lhe "uma certa endurance".
Raul
Raul,
ResponderEliminarE não arranja a dita versão? Não há em dvd :-(((